“Que antes renuncie a isso, portanto, quem não conseguir alcançar
em seu horizonte a subjetividade de sua época.” [1]
Jacques Lacan
Os sintomas que aparecem na clínica psicanalítica na atualidade parecem não se conformar exatamente com os modelos que a teoria apresenta. Somos surpreendidos com aparentes novidades, tanto na expressão do fenômeno sintomático, que não se enquadra bem com a definição nos termos de Freud- Lacan para sintoma [2] , quanto na resposta terapêutica que o paciente pode aceder. Mas será que as mudanças sociais e culturais produziram algo tão distinto do que já haviam observado os psicanalistas desde o final do século XIX?
A partir dessa questão, pretendo apresentar dois artigos que refletem sobre o termo ‘novos sintomas contemporâneos’, que tem sido recorrentemente utilizado para falar das patologias atuais, tais como anorexia, bulimia, toxicomania, hiperatividade, depressão adicções, pânico, e por aí vai. Optei por usar dois textos nesta resenha, porque eles se complementam naquilo que trazem sobre o assunto e podem servir para o melhor entendimento da questão.
Os textos Novos Sintomas: O que há de Contemporâneo no Mal-estar?, de Vanessa Serpa Leite e Rogério de Andrade Barros, de 2019, e Novos Sintomas e Declínio da Função Paterna: Um Exame Crítico da Questão, dos pesquisadores Rosane Zétola Lustoza, Maurício José d’Escragnolle Cardoso e Roberto Calazans, de 2014, me dão possibilidades de aprofundar o conteúdo apresentado pela professora Júlia Reis, na disciplina Clínica na Atualidade: Transtornos Alimentares e Sintomas Contemporâneos.
Serpa Leite e de Andrade Barros (2019) retornam ao conceito de sintoma em Freud e avançam até o termo ‘novos sintomas’, proposto pelos autores do Campo freudiano. Utilizam as referências freudianas de “neuroses atuais”, para estabelecer correlações com o estatuto dos novos sintomas, pouco permeáveis à palavra. Discutem dois casos clínicos como paradigma dos sintomas clássico e contemporâneo, apontando o avanço teórico e a incidência da cultura na prática da psicanálise.
Lustoza, Cardoso e Calazans (2014) examinam o caráter contraditório que existe entre o declínio da função paterna, ou da Lei social, e a inscrição do Nome-do-Pai. Afirmam que essa condição de falência da autoridade simbólica produz novas patologias, mas isso não seria assimilável com aquilo que chamamos de sintomas. Essas novas manifestações, para os autores, seriam respostas subjetivas à angústia. Através do quadro proposto por Lacan, em seu Seminário X - A Angústia - (1962/1963), apresentam os enquadres de acting-out, passagem ao ato e inibição, relacionados a fenômenos clínicos atuais.
Já na introdução, Serpa Leite e de Andrade Barros (2019), apontam o neoliberalismo, e o discurso da ciência, relacionados com o mal-estar contemporâneo. Com isso, há a criação de novas subjetividades, em função da proliferação da tecnologia e produção de objetos de consumo imediatos. Como consequência, aparecem os sintomas padronizados, prontos para usar, na mesma lógica dos produtos expostos como mercadorias.
Continuam o texto recuperando a conceituação de sintoma feita por Freud, que foi muito atento com a variedade e a etiologia dos fenômenos histéricos, apontando a relação causal entre o elemento desencadeador e a formação do fenômeno patológico. Os autores fazem uma releitura de textos de Freud fundamentais para a teoria psicanalítica, tais como Os Estudos Sobre a Histeria (1893), Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905), O Mal-estar na Civilização (1930), entre outros, todos sob o viés das questões do sintoma e das intercorrências da cultura sobre eles. No entanto, eles se detêm em duas conferências em especial, de 1917, O Sentido do Sintoma e O Caminho do Sintoma, nas quais Freud destrincha a estrutura sob a qual um sintoma se forma e se manifesta. Além disso, Freud expõe tanto o modelo sintomático, através do qual o conteúdo recalcado retorna à realidade presente, mas também o que ele nomeia de ‘neurose atual’ [3] , que escaparia a essa lógica.
A estranheza da satisfação que o sintoma provoca é o que, segundo Freud (1917), vai produzir o sofrimento do qual o paciente se queixa. O sintoma é a solução de um conflito psíquico realizado em uma satisfação pulsional que aparece como incompreensível ao sujeito neurótico. (Serpa Leite e de Barros Andrade, 2019, p.112)
Sob a rubrica de ‘apresentação do problema’, Lustoza, Cardoso e Calazans (2019) se detêm na época contemporânea e a decadência dos grandes referenciais sociais. Indicam que se antes os sujeitos se norteavam por sólidos códigos que os auxiliavam a interpretar o mundo, através da tradição, religião e autoridade, colocada em algumas figuras que poderiam encarnar o grande Outro, hoje as balizas desmoronaram e não há mais uma coesão social. Há um rechaço generalizado a qualquer um que queira encampar algum lugar de exceção. Tudo é lido como artifícios de uma ficção cultural, um mero semblante.
O foco principal de apresentação é apontar o declínio das insígnias sociais de referência e, com isso, as expressões livres de gozo com as quais os sujeitos têm que se confrontar. Os autores colocam atenção especial quanto a uma certa confusão que se faz no meio psicanalítico quando se fala de declínio da metáfora paterna e Nome-do-Pai, pois não é porque os referenciais que sustentavam o social decaíram que o significante estruturante também não está aí. Nas palavras deles, “muitos acabam assimilando de modo equívoco a decadência da lei simbólica a um apagamento do Nome-do-Pai.” (Lustoza, Cardoso, Calazans, 2014, p. 202)
Como o ponto principal do artigo de Serpa Leite e de Andrade Barros é a questão do sintoma, eles nos apresentam também outros autores, tais como Lacan, Racalcati, Tendlars, Laurent, Maleval, etc. Mas é com Jacques Alain-Miller, que aproximou a questão da toxicomania ao autoerotismo de Freud, que eles desenvolvem a lógica sob a qual é possível distinguir algo novo na manifestação sintomática atual, indicando que o mal-estar que se apresenta no setting analítico hoje está cada vez mais afastado da lógica do sentido. A antiga premissa de Freud, “onde estava o isso, deve advir o eu”, da Conferência XXXI, de 1933, - que pode ser interpretada como: tornar inteligível o que está inconsciente, encontrando o sentido por trás do sintoma, parece não dar mais conta das afetações que aparecem na clínica. Com uma pesquisa bastante robusta, eles destacam como tais autores apresentam a distinção entre a clínica clássica, com o mal-estar que cabia naquela época, e a clínica atual, com foco em gozos e demandas, diante de um Outro que não existe, ou melhor, com a operação do simbólico não conseguindo dar os limites ao real e ao imaginário, nem dar conta das demandas e imperativos de gozo que acometem os sujeitos, especialmente diante do coletivo globalizado, e ao mesmo tempo sem pertencimento.
Lustoza, Cardoso e Calazans (2014), focados nas implicações do declínio da função paterna, também apresentam uma pesquisa bastante robusta, conversando com outros autores além de Lacan, tais como Lipovetsky, Zizek, Miller, Recalcati, descrevendo consequências dessa destituição paterna, seja no campo sintomático, seja nas questões sócio-culturais. Utilizam como exemplo o filme Entre os Muros da Escola, de Larent Cantet (2008), ilustrando o que Bauman (2001) chamou de tempos líquidos. Também trabalham com a autora Alena Zupancic (2007), que faz considerações sobre a questão do vazio, que fica no lugar antes ocupado pelo grande Outro, na cultura. Questionam se realmente conseguimos lidar bem com esse lugar vazio, do pai ausente, como parecemos. Há uma ânsia por colocar alguém nesse lugar já antes ocupado.
Por fim, Serpa Leite e de Andrade Barros apresentam o caso Elisabeth, de Freud (1893), com a questão da conversão na histeria e o sentido que tinha esse sintoma, como uma satisfação libidinal. Diante da interpretação, o sintoma pode ceder. É interessante perceber o quão complexas são as associações simbólicas para que esse sintoma possa se construir. Porém, ele pode ser desfeito. Em contraponto, apresentam um caso de Nieves Soria Dafunchio (2010), em que o sintoma que emerge é a angústia e não a conversão. É preciso primeiro construir um sintoma analítico para depois poder trabalhar com a paciente, que apresenta medo e dúvida como principais queixas. Como nos lembram os autores, a angústia já era para Freud uma das expressões das chamadas neuroses atuais.
Lustoza, Cardoso e Calazans, dizem que os chamados novos sintomas, não são exatamente sintomas, pelo menos no que pode ser considerado um sintoma no sentido de Freud e Lacan –aquilo que se articula com o campo simbólico -, porém, eles são respostas subjetivas diante do discurso atual, que incita o gozo. Os autores classificam esses novos sintomas mais próximos do acting-out, passagem ao ato e inibição. Descrevem e exemplificam como cada um desses modos subjetivos de lidar com a angústia se apresenta, delineando bem como se enquadram nas respostas atuais.
O acting out seria um ato impulsivo em que o sujeito visa sair de um impasse simbólico de forma desesperada, mostrando algo ao Outro. Tal ato pressupõe uma demanda-demanda que não é posta em palavras, mas que antes mostra alguma coisa ao Outro. (...)A passagem ao ato envolve justamente a saída do sujeito da cena. Não havendo mais lugar para si numa configuração simbólica determinada, o sujeito então se evade da cena. A passagem ao ato é o oposto do acting out: enquanto no acting o sujeito se esforça por restituir um lugar na cena do Outro, na passagem ao ato o sujeito, sem lugar na cena, se abandona à posição de resto. Por isso o sujeito na passagem ao ato não demanda mais nada ao Outro; ele não se endereça mais a ele, apenas se identifica ao resto que caiu da cena (...) A inibição não envolve a execução de um ato, mas sua ausência. Ela é a restrição de uma função do Eu, tendo como finalidade evitar um conflito. Tal conflito surgiria caso fosse realizada certa atividade, ligada àquela função. (Lustoza, Cardoso, Calazans, 2014, p.207, 208 209)
Como consideração final, Serpa Leite e de Andrade Barros insistem na importância da psicanálise no século XXI, especialmente pelo destaque que a angústia apresenta na contemporaneidade. As formas rápidas com as quais os sujeitos tentam encobrir a angústia não funcionam, e é pelo analista sustentar a falta-a-ser; poder manejar, e não suturar, as demandas dos pacientes; permitir que o falasser construa um saber sobre si; possibilitar uma amarração entre real, simbólico e imaginário, que a psicanálise é uma saída para a condição de sofrimento do sujeito contemporâneo.
Lustoza, Cardoso e Calazans (2014) fazem uma conclusão bastante longa e interessante, defendendo que as categorias psicanalíticas ainda estão vivas para dar conta dos sintomas atuais. Eles apresentam mais elementos, dando mais corpo ao texto, fazendo uma boa amarração com todos os pontos levantados. Mas também validam os estudos sobre novos sintomas, especialmente porque o que se apresenta na clínica desafia a questão diagnóstica tradicional, focada nas três estruturas: neurose, psicose e perversão, o que justifica ainda mais a função das entrevistas preliminares.
Enquanto Serpa Leite e de Andrade Barros (2019) recuperam Freud, Lacan e novos autores, para dar conta da estrutura do sintoma e colocar foco no princípio do trabalho clínico, Lustoza, Cardoso e Calazans (2014) partem dos conceitos lacanianos, e seus comentadores, tendo como atenção principal os aspectos fenomênicos dos sintomas, e por qual razão eles têm aparecido assim. Por entender essa complementaridade que os textos possibilitam sobre a questão, é que me pareceu pertinente aproximá-los aqui. Mais ainda, os textos nos despertam a vontade de voltar aos textos clássicos para rever pontos fundamentais, que nos auxiliam na clínica psicanalítica hoje, e continuar pesquisando com os autores atuais.
NOTAS
[1] Frase extraída do texto Função e
Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise, de 1953, de Jacques Lacan, no qual
ele faz uma advertência à prática da psicanálise.
[2]
Sintoma, no sentido psicanalítico, é uma formação do inconsciente que tem
estrutura de linguagem. Apesar de interpretável, sua função está relacionada
com uma satisfação libidinal, nos termos de Freud, ou um gozo, nos termos de
Lacan. O sintoma supõe um conflito já instalado.
[3] Penso que esse termo, neurose atual, é uma escolha bastante
inteligente de Freud, por ter um significado duplo, que indica tanto a expressão
de uma condição neurótica não articulada com o um trauma do passado, recalcado,
quanto uma atribuição aos sintomas que se apresentam na realidade contemporânea
na qual um sujeito está vivendo. É algo que se altera com as mudanças em uma nova
cultura. Ou seja, atual para o sujeito, atual para o social. E isso ainda pode
ser pensado com o referencial de tempo, mudanças culturais entre o século XIX e
o século XXI, por exemplo, mas também em relação ao espaço, em que um sujeito,
quando muda de país, vivencia situações próprias do desconhecimento de uma nova
sociedade e suas regras.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LUSTOZA, R.Z.; CARDOSO, M.J.d’E.; CALAZANS, R. “Novos sintomas” e declínio da função paterna: um exame crítico da questão. Ágora, Rio de Janeiro, vol. 17, nº 2, 201-213, jul.-dez. 2014. Disponível em https://doi.org/10.1590/S1516-14982014000200003 acessado em 26 de mai. 2024.
SERPA LEITE, V; de ANDRADE BARROS, R. Novos sintomas: o que há de contemporâneo no mal-estar? Revista aSEPHallus de Orientação Lacaniana, Rio de Janeiro, vol. 14, nº 27 , 110-124, nov.2018-abr. 2019. Disponível em http://www.isepol.com/asephallus/numero_27/pdf/8%20%20VANESSA%20E%20ROGERIO.pdf acessado em 26 de mai.2024.