domingo, 22 de dezembro de 2024

A REPETIÇÃO


Neste resumo, apresentarei o tema da repetição, que é um dos conceitos fundamentais da psicanálise. Esse assunto se faz muito importante diante do campo de estudos das toxicomanias, onde, grosso modo, vemos a repetição tanto nos modos de gozo do sujeito, através do uso de substâncias, por exemplo, como também nas declaradas recaídas diante das tentativas (frustradas) de abandono da dependência.

Do módulo de ambientação, do curso de especialização em Toxicomanias e Atenção Psicossocial, optei pela aula do professor Richard Simanke sobre a repetição. Ela foi baseada em seu livro, de título Repetição, publicado em março de 2024, pela editora Sinthoma. O vídeo é dividido em quatro partes, sendo a primeira uma introdução sobre o tema; a segunda, com o foco nos conceitos de Freud; a terceira, em Lacan, tanto no que se aproxima do conceito freudiano, quanto no que se diferencia; e no quarto vídeo, ele apresenta brevemente a repetição em outros campos de saber, especialmente a filosofia, articulando e concluindo com os conceitos psicanalíticos.

A repetição é tanto um fenômeno quanto um conceito metapsicológico. Para a psicanálise é considerada fundamental, pois é vista em manifestações clínicas, situações analíticas, fenômenos psicopatológicos, ou seja, na vida humana como um todo. Fazemos as coisas do mesmo jeito, repetimos os mesmos erros, vemos os outros fazerem as coisas repetidamente, e ainda assim, somos incapazes de aprender com os nossos próprios erros, e, como uma espécie de destino, erramos novamente. No âmbito cognitivo-comportamental, a zona de conforto é uma espécie de repetição, pois ter a previsibilidade produz apaziguamento, mesmo que isso empobreça a vida.

Desde a filosofia clássica temos a questão do repetir. Platão apresenta o conceito de rememoração. Para ele, a alma teria uma memória da experiência vivida. Mas o sujeito encarnado, a cada vivência, experimentaria isso como novo, surpreendente. Porém, é novo apenas para o sujeito finito, encarnado, limitado, que não consegue agir de maneira totalmente racional. Na filosofia moderna, Nietzsche também apresenta a repetição através do conceito do eterno retorno, em que nada é absolutamente novo. Neste caso, ele traz essa questão como uma questão moral e com uma pergunta de fundo: a vida que levamos é aquilo que poderíamos fazer para sempre?

Freud primeiro apresenta o funcionamento da repetição e depois o conceitua através da compulsão à repetição. A repetição seria da situação traumática, uma espécie de revivência do trauma: o que foi excluído da vida mental consciente do sujeito, retorna como sintoma, um esforço de defesa ao traumático.

Seguindo o desenvolvimento da sua teoria, Freud trabalha sobre o conceito de pulsão e a necessidade de conservação, preservação do mesmo. Articula assim a regressão associada à repetição, pois o sujeito teria a intenção de retornar ao passado para manter as coisas da mesma forma. Ele aponta a fixação também relacionada a isso. Segundo o professor Simanke, no seu desenvolvimento, o sujeito vai deixando lastro das passagens que faz, e quando encontra um obstáculo, tende a voltar ao ‘tempo bom’.

No texto Recordar, Repetir e Elaborar, de 1914, Freud apresenta a compulsão à repetição como um conceito clínico, em que o sujeito repetiria para não recordar. Aqui, Freud ainda acrescenta um viés da transferência analítica, que não estaria mais como o motor da análise, no sentido da recordação, mas serviria como um modo do sujeito repetir o vivido com o analista, que seria envolvido nos seus sintomas, colocando assim, a transferência como um obstáculo à análise. É com o cessar da repetição que o sujeito pode recordar, e com isso, a análise prosseguir.

 A compulsão à repetição não se apresenta só na análise, mas em toda vida do sujeito. E por isso, Freud fala em neurose de destino. O sujeito não sofre pelo que lhe acontece, mas ele sofre pelo que faz a si mesmo, pelas escolhas que faz. O que muitos hoje chamam de autossabotagem, para que as coisas não deem certo na vida. Isso, de certa forma, é a própria neurose. A partir daí, Freud nota que a repetição é independente da análise e dá um outro tom à compulsão à repetição, no texto Além do Princípio do Prazer, de 1920. Agora ele trata o tema não mais no sentido clínico, mas como um conceito metapsicológico, um fundamento teórico da psicanálise. A compulsão à repetição é o próprio além (e aquém) do princípio do prazer, ou seja, o sujeito não repete porque estaria em busca do prazer, como Freud pensava no princípio, aliás, o princípio do prazer é irrelevante para a repetição. O que a pulsão quer é repetir. Freud revisita então todos os conceitos anteriormente elaborados por ele, a partir desse novo paradigma. Na infância, brincadeiras, histórias, jogos, tudo é repetitivo. Na vida adulta, idem. Repetir é a expressão mais pura da pulsão. Freud chega então num novo viés para a conservação, que antes ele via como um modo de autoconservação, para que algo continuasse a existir. Agora, ele vê a conservação como uma busca para que algo volte ao estado anterior, em que não haviam estímulos. Algo retrógrado, voltando aos próprios passos. É aqui que aparece a pulsão de morte, com seu caráter de retorno ao estado anterior. A meta da vida é retornar ao estado inanimado.   

  Lacan, com o texto Complexos Familiares, publicado em 1938, inicia uma certa cronologia do desenvolvimento da repetição em sua obra. Nesse momento, ele não pensa na repetição como uma noção intrapsíquica, como em Freud, pois ainda considera a noção de complexo vinda de uma dupla via, uma psicanalítica, da teorização feita por Jung (através de quem ele chegará a Freud), e outra, da psiquiatria, da escola de Zurich, com Bleuler, pensando nas questões da psicose e das doenças mentais. O complexo não teria apenas o status psíquico, mas também sociológico, na relação entre os membros da família. Seu pensamento nesse período estava bastante alicerçado em Durkheim, o pai da sociologia francesa. O complexo, para o Lacan desse período, vem no desenvolvimento do sujeito humano, que passa pela maturação biológica, depois a maturação sociológica, através da família, e pela maturação mental.

Lacan descreve três complexos fundamentais. O primeiro é o complexo do Desmame, desmame materno, biológico. Diante disso, como fica a situação da criança com outros membros da família, num aspecto sociológico? E, também o aspecto psicológico, como a criança vivencia isso, o que fica como herança para o sujeito em formação, no desenvolvimento psíquico? Lacan chamará isso de imago, que seria uma estrutura imaginária que configura a experiência subjetiva. Imago não como uma entidade mental, mas como forma de organizar a experiência. Do complexo do desmame se produz a imago do seio.

Outro complexo fundamental é o complexo de Intrusão, que vemos com o nascimento de um irmão, por exemplo. Isso organiza o sujeito. Para Lacan, o complexo de intrusão é o mais importante, é um complexo nuclear. Ele está relacionado ao complexo do espelho. É com esse conceito que Lacan repensa algumas noções freudianas como o narcisismo, a questão da identificação, a teoria do imaginário, e a experiência da psicologia comparada: o sujeito não é um outro no espelho, mas um reflexo do seu próprio corpo. O que fica para o sujeito é a imago do outro. O sujeito se relaciona com outros como semelhantes. É dentro desse complexo que temos a rivalidade fraterna, que é fundamental. O ciúme fraterno é o protótipo para todas as relações sociais.

O terceiro complexo é o complexo de Édipo, formação mais tardia, posterior ao complexo de intrusão. Não é um fato biológico, considerando a diferença sexual, mas introduz a imago do pai, a figura do outro como diferente, não como semelhante como no complexo anterior. 

Toda essa teorização inicial é uma forma de pensar a repetição para Lacan, pois os complexos não são episódios do desenvolvimento, que não deixam restos nesse processo. Os complexos fazem parte de uma estrutura do sujeito que se dá, e vai ser reativada em circunstâncias da sua vida futura. Cada um desses processos constitui uma estrutura reativa que faz com que esse sujeito reaja às situações externas de determinada maneira. 

Posteriormente, Lacan vai formular e reformular o conceito de repetição em dois principais momentos. Primeiro, através do seminário sobre A Carta Roubada, de 1955, em que Lacan reescreve o que Freud teorizou sobre a compulsão à repetição, sob os termos do estruturalismo linguístico. Lacan pretendia afastar Freud dos elementos biológicos e psicológicos e introduzi-lo na linguística e na antropologia social. Ele nomeia como automatismo de repetição a forma como se estrutura a combinatória da linguagem. Antes da palavra significar alguma coisa, ela se relaciona com outras palavras. Entendemos suas propriedades a partir da sua relação com outros signos. Ele chama esse sistema de estrutura.

As coisas se repetem porque o sujeito tem um número de combinações possíveis dentro da estrutura de linguagem para reagir. Não que elas se repetem sempre iguais, mas é uma espécie de rearranjo dos mesmos termos, um conjunto de elementos de um mesmo sistema de combinação. A estrutura é um sistema fechado, portanto existe um número finito de elementos dentro desse conjunto, que concorrem continuamente. Uma espécie de maquinação do significante, um mecanismo formal. O fenômeno que se apresenta como repetição é uma combinação dessa maquinaria de significantes, um conjunto de rearranjo dessa estrutura, da qual o sujeito não consegue escapar.  Com todo esse trabalho, Lacan formaliza a instância do simbólico.

E o segundo momento de trabalho do conceito de repetição é no Seminário 11, Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, de 1973, que Lacan vai ter o real como plano de trabalho. A repetição é um dos quatro conceitos fundamentais, ao lado do inconsciente, da pulsão e da transferência. Aqui, Lacan recorre às noções aristotélicas de automaton (aquilo que se move por si mesmo) e tiquê (quando se intenta atingir um objetivo, mas se atinge outro, por acaso, imprevisto). Essas concepções são uma forma de metáfora para tratar da repetição. Ele se interessa pelo automaton, como o automatismo que se referia à compulsão à repetição. O automaton aristotélico tem a ver com a repetição simbólica, que Lacan já tinha adiantado na Carta Roubada.

Mas tem a outra dimensão, a da tiquê, da fortuna, aquilo que escaparia à compulsão à repetição. Uma espécie de real, que é traumático e vai exigir um trabalho do simbólico, que é incompleto. Real esse que escapa à capacidade de simbolização. O sujeito vai encontrar com uma certa dimensão da vida, que ele não consegue antecipar. Assim, ele se depara com esse imprevisível do mundo que não foi construído simbólica-imaginariamente. Para além daquilo que é o mundo para o sujeito, há algo que ainda existe, colocando em ato algo novo para ele. É traumático porque não está simbolizado, oferecendo a emergência do novo. E, ao mesmo tempo, indica a insistência do sujeito em incluir no seu mundo aquilo que escapa.  A repetição em que o real está incluído não é aquele mesmo arranjo onde o mesmo se repete sem cessar, mas é o esforço do sujeito em colocar isso no mundo. Porém, é uma tentativa fracassada, porque o real permanecerá real. 

As reflexões tanto de Freud, como de Lacan, pensam a vida extremamente pessimista, afinal, nada de novo acontece ou pode acontecer. Estamos presos à repetição. 

O professor Simanke elege o filósofo Francis Bacon para trazer um aspecto fora do campo psicanalítico no sentido da repetição. Bacon fala sobre catástrofes naturais e humanas e atribui ao esquecimento um papel importante nesse sentido. Ele fala do caráter lacunar da memória. O autor faz referências tanto ao Eclesiastes, quanto a Platão. Como vimos anteriormente, Platão fala da memória da alma, que não seria disponível ao ser encarnado. E Salomão, no livro bíblico, diz que toda novidade é esquecimento. Se não tivéssemos perdido memória com as catástrofes (registros humanos que são destruídos pelas forças da natureza ou pelas ações dos homens), não teríamos a impressão de viver algo novo, porque a vida e a história são só repetição. Com esses elementos, Bacon articula a repetição, a recordação e o novo. Seu olhar não carrega pessimismo.

Tanto Freud, como Lacan, vão procurar antídotos para essa condição, para esse pessimismo. Freud aposta na dessexualização da pulsão, na possibilidade criativa de Eros, que aglutina as coisas e vai dar outro destino à pulsão de morte, funcionando na complexidade e criação e não na regressão e dissolução. Apesar disso, a pulsão de morte continua. Eros seria então um paliativo mais do que um antídoto. Lacan aposta no potencial criativo do encontro do sujeito com o real. Mesmo traumático, patológico, ele é a única possibilidade do novo na vida humana. Freud então se coloca como um pensador clássico, apostando na rememoração. O objetivo da análise é fazer o sujeito rememorar para parar de repetir, mas isso é impossível. Já Lacan é um pensador moderno, afirmando que a verdade do sujeito está na repetição.

A aula é bastante completa, assim como o livro, e me faltou espaço para associar outras referencias nesse resumo. Essa articulação ficará para um próximo trabalho.


OBESIDADE INFANTIL PARA ALÉM DA COMIDA

 “A infância é chão sob o qual pisamos a vida inteira.”

Lya Luft

Nesta resenha pretendo comentar o artigo “‘A gente não quer só comida’: integralidade na atuação interprofissional no cuidado da obesidade infantil”, da autora Cláudia Carneiro da Cunha, publicado no número especial da revista Saúde em Destaque, de 05 de dezembro de 2022. Este texto foi escolhido em função da conclusão do módulo V, sobre Transtornos Alimentares na Infância, com aulas da psicanalista Paula Félix e das médicas Dra. Marina Mercuri (pediatra) e Dra. Georgette de Paula (endocrinologista infantil). 

O artigo de Cunha (2022) traz uma análise socioantropológica de uma prática de assistência de caráter interprofissional, da psicologia e da nutrição, voltada ao atendimento de crianças e adolescentes obesos e seus familiares, quase sempre mães, acompanhados em ambulatório público da Universidade do Rio de Janeiro (UERJ). O trabalho consistia em articular a educação em saúde e a integralidade de cuidados, com o brincar como instrumento terapêutico, e a arte como campo de vivências da singularidade. O corpo e a corporeidade, nesse processo, são tomados pela sua dimensão biopolítica e pelo viés sensível e simbólico. Aqui temos um bom exemplo de trabalho conjunto, tanto no âmbito de profissionais das áreas envolvidas no tratamento, quanto de crianças / adolescentes e seus responsáveis, apontando a importância do grupo quando temos diante de nós um tratamento complexo. 

A obesidade é considerada uma doença multifatorial, caracterizada pelo acúmulo de tecido adiposo no corpo. Há indicativos de correlações entre ansiedade, depressão, questões familiares e obesidade infantil. Na atualidade, essa questão tomou uma proporção maior, tanto no aumento significativo de casos, como na mudança do discurso da mídia e das redes sociais, que aponta as diferentes formas corporais, especialmente aquelas que apresentam um aspecto mais volumoso, como preocupante e ‘pouco saudável’, gerando uma condição de exceção.  

 “Onde está o menino que fui, segue dentro de mim ou se foi?”

Pablo Neruda

O projeto-piloto, que nasceu com o nome ‘1,2, feijão com arroz: tecendo práticas da nutrição e da psicologia na alimentação infanto-juvenil’, incluía atividades em grupo, individuais e oficinas temáticas. Além da proposição de métodos específicos para cada área – a psicologia propôs o brincar como instrumento terapêutico -, o grupo interdisciplinar também levantou questões e avaliou de forma conjunta resultados e entraves. Foram debatidas as configurações de família na contemporaneidade e o reflexo disso na educação das crianças. As questões do comer, a tecnologia e os meios de comunicação, o entretenimento de crianças e jovens na atualidade, o retraimento do brincar, especialmente em espaços públicos (em função da violência urbana), tudo isso foi pauta. O grupo também abordou o tema da comida para fora do núcleo familiar, explorando as formas de produção e distribuição de alimentos.

No projeto, com uma pesquisa etnográfica de suporte socioantropológico, as crianças foram convidadas a brincar livremente, as mães participaram de rodas de conversas, e houve uma atividade conjunta voltada à educação alimentar. Os pesquisadores constataram os fenômenos e os interpretaram, mas também fizeram parte ativa do grupo, evitando criar uma lógica normativa e verticalizada. A observação-participante é um recurso-chave nesse tipo de pesquisa, pois se considera que muitos elementos não podem ser apreendidos por meio da fala ou da escrita. O ambiente, comportamentos individuais e grupais, linguagem não verbal, sequência e temporalidade, tudo isso é fundamental como subsídio para a interpretação dos dados e a captação do excedente de sentido, que causa afetações no campo investigado.

 “O que a memória ama, fica eterno.”

Adélia Prado

Como abordagem do primeiro eixo temático de trabalho, ‘relações familiares e o lugar da criança na família’, Cunha utilizou a ferramenta Familiograma, instrumento que permite descrever, e ver, como a família funciona e interage. O objetivo era obter uma representação gráfica com uma idéia da composição das famílias, dos tipos de arranjos e vínculos, e das pistas sobre as influências dessa composição na obesidade infantil. Foi observado que, em muitas famílias, havia várias figuras de autoridade, mas nenhuma, ou poucas que assumiam a condução do tratamento da criança ou adolescente. A proposta de atividade foi de uma colagem, com figuras de pessoas e bichos, recortadas de revistas, além de tinta guache e canetinha para composição de desenhos em papel. Essa dinâmica foi feita com as crianças e as mães separadamente. 

“As crianças não brincam de brincar, elas brincam de verdade.”

Mário Quintana

No segundo eixo, ‘corpo sensível e imagem corporal’, os profissionais visavam proporcionar às crianças e adolescentes uma experiência de ‘renascimento sensível’, dando espaço para um conjunto de sensações mobilizadoras de marcas corporais inconscientes, a fim de acessar sentimentos e emoções em uma rememoração do corpo pelo corpo. A hipótese de trabalho, nesse caso, era de que a interrupção do cuidado, ou sua descontinuidade nos primeiros anos de vida, geram efeitos específicos no psicossoma. [1] 

Com base nisso, a interrogação de Cunha seguiu para investigar se essas marcas, na mais tenra idade, podem estar relacionadas com a obesidade. Cunha baseou sua pesquisa tanto no método Angel Vianna, que visa um corpo mais livre para que ele possa descobrir seu jeito de fazer movimentos, e também na abordagem da Psicanálise do Sensível, de Ivanise Fontes.  A autora considerou que diante de vivências de descontinuidade no cuidado na relação mãe-cuidador/ bebê, o sujeito desamparado busca conforto psíquico no ato de comer, na produção de um corpo farto, redondo, aconchegante, na busca por um preenchimento, um ‘autoamparo’, com a gordura operando como uma espécie de ‘prótese psíquica’.

As crianças e adolescentes participaram da vivência de ‘renascimento’, através da entrada e saída de uma caixa de papelão de grande dimensão, que as englobasse, proporcionando contorno e proteção. Do lado de fora Cunha e as estagiárias, além das demais crianças, aguardavam o tempo de nascimento de cada um, interagindo com singelos toques na caixa, simulando sons, movimentos do mundo externo, capazes de afetar a vida intrauterina. Quando a criança resolvia nascer, era acolhida por todos com manta macia, deitada de bruços, recebendo acolhimento. Cunha (2022) recorre ao conceito de Eu-pele, de Didieur Anzieu, em que esse autor afirma que a pele é a base orgânica que auxilia na fundamentação de funções específicas para as futuras organizações do Eu. Além disso, ela também recorre ao conceito de holding, de Winnicott, em que o próprio contato físico faria o bebê se sentir amparado e seguro. Em seguida do exercício, foi oferecido um pedaço de argila para que as crianças e adolescentes pudessem criar formas sobre o sentido/vivido. Não se tratava de criar uma representação, mas algo com o qual pudessem moldar, ancorar as sensações, possibilitando algum grau de elaboração e conforto.

Os efeitos da prática de ‘renascimento sensível’ foram percebidos numa vivência sensorial posterior, do terceiro eixo temático, ‘sentidos do olfato, do paladar e da alimentação’. Na roda de cheiros, as crianças, adolescentes e mães foram convidados à atividade olfativa com cheiros diversos, relativos às experiências cotidianas: café, achocolatado, chiclete, laranja, cravo, canela, cebola, alho, etc. Com isso, foram exercitando a rememoração e relacionando essas memórias com a família e a vida familiar. 

“As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças.”

Manoel de Barros

A partir disso, chegaram ao quarto eixo temático, ‘dinâmicas familiares e rotinas alimentares’. Novamente mães foram separadas das crianças e adolescentes. As primeiras foram conversar sobre o vivido e rememorado, já as crianças foram convidadas a criar esquetes com as memórias provocadas. Essa atividade foi inspirada no Teatro Fórum, do Centro do Teatro do Oprimido, que estimula a criação de cenas com situações de opressão, discordância e impasse, envolvendo desigualdade de poder entre dois indivíduos. Notou-se que os conflitos das cenas giraram sobre o tema da alimentação, mesmo sem essa ter sido a orientação. As crianças e adolescentes também utilizaram a caixa-útero, entre outros materiais e adereços disponíveis. Fizeram cenas, expressando situações domésticas com caráter agressivo acentuado. Depois, refizeram essas cenas, reformulando a postura dos personagens, mostrando mudança de posição subjetiva diante das relações de poder. 

Após essa etapa, aconteceram discussões sobre o trabalho e as cenas. O mais importante foi dar espaço para a expressividade e para a criatividade diante dos efeitos do conflito no corpo e na vida. A questão principal era dar passagem aos afetos, performar esses afetos relacionalmente. 

Durante as atividades, foi observado nas crianças e adolescentes uma espécie de ‘alienação’ [2]  de si mesmas com relação à imagem corporal e a propriocepção do corpo presente e vivo. As ações do projeto foram pensadas como propulsoras dessa consciência corporal, começando pela pele, pelo invólucro sensível e estruturante do corpo no mundo. A díade mãe-filho é entendida como um complexo funcionamento dessa ligação psicossomática, que em alguns momentos parece impedir que a criança se delineie na sua singularidade. 

“As fantasias de infância são as memórias transfiguradas pela saudade.”

Rubem Alves 

No artigo, Cunha (2022) apresenta o brincar como a base para o estabelecimento da relação mãe-filho, sendo instrumento para uma práxis corporal adequada: a formação da consciência corporal, o desenvolvimento sensório-motor, a construção espacial, a construção da consciência de si e da consciência social. O brincar é a linguagem preferencial da criança, um elemento de conexão cultural presente em todos os grupos sociais, um meio de criação de vínculos. As brincadeiras e os movimentos permitem falar de comida, alimentação e nutrição em diálogo com outros saberes, sem estabelecer hierarquias entre eles. No espaço do serviço de saúde construído pelo projeto, o riso solto, o corpo livre e a descontração assumem um lugar especial no tratamento de crianças/adolescentes e seus responsáveis, em contraposição à rigidez das práticas de saúde normativas. 

O trabalho resultou em melhora nos exames bioquímicos, diminuição de medidas antropométricas, autoaceitação, diminuição do sedentarismo, melhora no sono, no convívio social, nos níveis de ansiedade, agressividade, compulsão alimentar e relações familiares. A autora, conforme resultados, entende que programas de intervenção com esse perfil devem compor políticas publicas. 

As questões levantadas ao final do projeto são questões que deveriam ser feitas em todo caso de obesidade infantil, a começar pelo médico.

O que seria a melhora da criança? Comunicar-se melhor nas consultas e expressar seus desejos, dificuldades e insatisfações? Engajar-se ativamente no tratamento nutricional? Além dos ‘riscos’ orgânicos, presentes e possíveis com o tempo de convívio com o sobrepeso ou à obesidade, qual é o ‘problema’, qual é o problema de ser ‘gordo/a’ na infância e adolescência? Quais são os demais riscos dessa condição habitar um corpo infantil dissidente? (CUNHA, 2022. p. 291).

Como estamos num terreno infanto-juvenil, o aspecto lúdico dos Contos de Fadas pode entrar para complementar o processo de subjetivação que acontece nessa fase da vida humana. O conto ‘João e Maria”[3] , que, por excelência, é o conto que se refere às questões alimentares, foi muito bem trabalhado no campo psicanalítico por Bruno Bettelheim e Diana Corso, com a visada de apontar uma fase importante na vida das crianças, que se refere à ansiedade infantil diante da separação da mãe. 

O conto traz a história de uma família muito pobre. Os pais decidem deixar as crianças na floresta à sua própria sorte, para não terem mais duas bocas para alimentar. Na primeira tentativa, as crianças retornam para casa, não aceitando a separação. Na segunda, por trocarem as pedras por migalhas de pão como sinalização do caminho, não conseguem retornar. Elas encontram uma casa feita de doces e se fartam de comer. A dona da casa, uma bruxa, os convida para entrar e logo eles percebem que ela irá devorá-los. As crianças precisam de criatividade e astúcia para reverterem esse destino fatal. Conseguem enganar a bruxa, jogá-la dentro do forno e fugirem para casa com um tesouro que encontraram por lá.

O conto de fadas é a cartilha onde a criança aprende a ler sua mente na linguagem das imagens, a única linguagem que permite a compreensão antes de conseguirmos a maturidade intelectual. A criança precisa ser exposta a essa linguagem, e deve aprender a prestar atenção a ela, se deseja chegar a dominar sua alma.” (BETTELHEIM, 1980, p. 197).

 Bettelheim (1980) faz uma boa análise, de viés psicanalítico, em relação ao conto. Aponta a questão da ansiedade infantil da separação da mãe. Nesse processo, a mãe se torna egoísta e rejeita as solicitações orais vindas da criança. A criança, por sua vez, precisa usar de criatividade para sair da situação e reaver os pais. A estrutura do próprio conto indica a participação da criança no processo, uma vez que o sujeito, por mais jovem que seja, tem sua participação ativa na sua constituição. João e Maria já suspeitam que os pais querem se livrar deles. Na primeira ida à floresta, João já leva pedrinhas para guardar o caminho de volta. Mas na segunda, escolhe as migalhas, que são comidas pelos pássaros e os deixa sem retorno. São os tempos de simbolização, em que há criframento de linguagem nas experiências para futuros deciframentos. Um outro aspecto é sobre quais passagens são feitas pelos irmãos, conjuntamente, e quais devem ser feitas individualmente. O retorno para o lar, e para os pais, se dá com eles já em outra posição, agora tendo adquirido atributos com os quais vão fazer parte dessa família. Podemos pensar na passagem do ser (o amor da mamãe), para ter (algo que mamãe deseja), como um tempo edípico necessário como avanço desse sujeito no mundo.

Corso (2006) aponta as questões de desmame e independência, a curiosidade do bebê sobre o mundo além da mãe, o medo da morte, o reencontro do corpo da mãe na casa de guloseimas da bruxa, a necessidade de aceder à linguagem para sair da grata passividade para uma posição ativa, dentre tantos outros aspectos. 

Fazer o esforço de pedir com palavras (em vez de gritos), trabalhando no uso do vocabulário, assim como se abastecer do que necessitam (indo buscar os objetos com as próprias pernas) são atos vividos como abandono. Se a criança tiver de se engenhar para atingir um objetivo é porque não o fizeram por e para ela. Neste momento (às vezes pelo resto da vida), ser atendido é uma forma primitiva de ser amado, trabalhar para cuidar-se e abastecer-se evoca uma forma de solidão. (CORSO, 2006, p. 49)

Pesquisando para esta resenha, me parece cada vez mais importante o trabalho conjunto para a obtenção de resultados promissores no tratamento de crianças e adolescentes, não apenas nas questões alimentares. Vemos nos jovens a dificuldade em tolerar o Outro, seja na forma dos semelhantes, seja em situações de espera, frustração e decepção. A mídia e as redes sociais, com o constante estímulo ao consumo e à competitividade, provocam um abalo significativo nas possibilidades de confiança e estabelecimento de vínculos através das relações interpessoais. Na atualidade, com o incentivo ao individualismo, o trabalho em grupo estimula um retorno ao pertencimento, e com isso, ter com quem dividir os processos e jornadas pelas quais passamos.

[1]. O Psicossoma é o corpo dos sentimentos e emoções, o veículo com o qual nos manifestamos na dimensão extrafísica. O conjunto de componentes físicos e psíquicos, ou a união do corpo e da alma; unidade psicofísica do ser humano.

[2]. A palavra alienação aqui tem o sentido de alheamento, uma espécie de afastamento da consciência de si. É importante frisar isso, pois esse termo é um conceito importantíssimo para a psicanálise, especialmente no caso da constituição do sujeito, que acontece na fase de vida em que essas crianças observadas estão passando. 

[3]. João e Maria, originalmente Hansel e Gretel, é um conto de tradição oral, recuperado pelos irmãos Grimm.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BETTELHEIM, B. “João e Maria”, in: A psicanálise dos contos de fada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

CORSO, D.L. Expulsos do Paraíso, in: Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006.

CUNHA, C.C. da. ‘A gente não quer só comida’: integralidade na atuação interprofissional no cuidado da obesidade infantil. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v.46, nº especial 5, 284-296, dez. 2022. Disponível em http://doi.org/10.1590/0103-11042022E523  acessado em 13 de jul. 2024.