Começo dizendo que não pretendo culpabilizar as pessoas em relação às suas condutas alimentares, muito menos pela imagem dos seus corpos, ainda que o título da minha apresentação possa sugerir isso.
Portanto, levantar a questão sobre a responsabilidade de cada um de nós em relação àquilo que comemos, vai muito além das escolhas individuais e das consequências sobre essas escolhas.
Você tem fome de quê?
O desejo interfere nos avessos do sujeito, seja pela via vivificante, seja pela via compulsiva.
Como psicanalista e semioticista, observo os sujeitos atravessados, e atrapalhados, com as exigências dos discursos sociais, encontrando pouco espaço para o encontro com seus próprios desejos.
Além disso, a relação com os outros, os grandes outros, os que parecem saber o que fazer, e como fazer, para se colocar no campo social, parece cada vez mais difícil e afastada.
Vivemos um momento em que estamos diante de uma mudança considerável das subjetividades.
Temos muitos discursos e pouco desejo. Queremos muitas coisas, mas não queremos impacto em nossas garantias imaginárias. Buscamos sentido para a vida, propósito, e a comida entra na lista de coisas que possam garantir algum destino significativo, seja provocando prazer, seja expressando algum tipo de qualidade de vida.
Também temos muitas imagens de desejo, imagens que seduzem, provocam, mas rapidamente nos desinteressam, desviando do desejo de fato. São muitos objetos a desejar, como se a realização do desejo significasse um ideal social que devemos cumprir. Mas será mesmo que desejamos?
Além disso, passamos por mudanças dos corpos, que agora são manifestados através de um excesso de imagens. Imagem da perfeição que indica seguir as métricas, higienização e polimento, intervenções para adequação. Me refiro também à imagem, não apenas no sentido daquilo que será visto na forma do corpo, mas também no significado que aquela identidade transmite, ou seja, como uma pessoa é vista no mundo. Em contrapartida, falta a materialidade dos corpos, a concretude, o vivo daquele sujeito através de seu corpo. Há também mudanças dos prazeres, levando as pessoas a tentar chegar ao extremo, como forma de sentir mais, como se o êxtase, o flerte com a morte, fosse o melhor ponto de satisfação.
Na psicanálise, usamos para isso a expressão gozo. A tomamos pelo campo do Direito, como o gozo sendo um direito estabelecido, e limitado, por uma lei. Direito a gozar de férias, por exemplo. Porém, uma vez um gozo permitido, ele não tem limites, é preciso um limite externo, a Lei, que determine quando parar. No entanto, estamos em um momento em que vivemos sob o discurso de não ter limites, não parar. E os sujeitos têm que conviver com essa gangorra de determinações contraditórias, em que se incentiva o direito ao gozo sem limites, porém, se adverte que isso pode levar à morte, “então pare no limite certo para você”. Porém, não sabemos o limite certo, pois não sabemos exatamente o que satisfaz, quanto satisfaz.
E para colocar mais um item nesse quadro das novas subjetividades, temos a mudança dos desejos, pois agora, na lógica do consumo, só desejo o que posso ter, mais do mesmo, aquilo que já sei que gosto, que dá prazer, evitando o desconhecido. Porém, a lógica do desejo é a lógica da surpresa, do desconhecido, ou seja, desejar algo enigmático, instigante, que desloca o sujeito de um lugar de garantias e certezas, fazendo com que essa estranheza, que aparece através do desejo, também faça aparecer outras faces do sujeito, novas para ele mesmo. Uma espécie de um outro em si mesmo.
Para localizar melhor as possibilidades de responsabilidade e desejo do sujeito humano, preparei um infográfico mostrando onde estamos no mundo e o que isso significa sobre sermos responsáveis pelo que comemos.
No centro temos o indivíduo. Para a psicanálise, o indivíduo é um ser dividido entre o sujeito do inconsciente, aquele que fala, mesmo que nem sempre ele saiba porque fala, ou o que diz. E o eu, com seu corpo, sua imagem, que funciona em paralelo ao sujeito, como se os dois ficassem tentando se ajustar para ser um.
Antes mesmo dessa pessoa nascer, já existe a estrutura familiar, seus pais e aquilo que se projeta para ela. E, essas projeções, são tanto em relação ao que os pais esperam dela, quanto o que os pais entendem que a sociedade espera dela. Portanto, há um meio ambiente em que essa pessoa está inserida, que diz muito sobre quem ela deve ser.
Paralelamente aos ideais familiares e sociais, há também suas experiências vividas em todas as fases da vida e as formas de gozo a que ela terá acesso, operando nas permissões e proibições diante desse panorama de muitos outros. E por fim, o desejo, aquele pedacinho que falta para completar o quadro, o que chega mais perto de ser algo singular dessa pessoa, que pertença só a ela.
Dentro dos imperativos da cultura contemporânea, só pensando no que se relaciona com a comida, temos a indústria alimentícia, que funciona com força através do marketing e da publicidade para seus produtos serem desejáveis. Para causar esse efeito, os produtos devem ter uma imagem que transmita prazer, um toque de exclusividade e ainda acessibilidade. Temos também a indústria farmacêutica, que oferece tudo que você vai precisar para viver mais e melhor, inclusive muitos produtos que combatem o mal-estar causado pelo consumo das ofertas da indústria de alimentos. A indústria da medicação também trabalha com força através do marketing e da publicidade. Além dessas duas, ainda temos a indústria da saúde e do bem-estar. Sim, essa é uma indústria e por estar travestida de cuidado, pode nos deixar enganar pelos seus encantos. Além dos produtos, que podemos incluir nas indústrias acima, temos os médicos, nutricionistas, educadores físicos, terapeutas, profissionais e espaços de cuidado para nos oferecer formas de prevenção e tratamentos alternativos para dar conta do mal-estar tanto do consumo do que nos faz mal, quanto das exigências emocionais e psicológicas do mundo em que estamos vivendo.
Temos ainda a indústria do lazer, com restaurantes, viagens, hotéis, diversas formas de viver o prazer que a gente merece, porque nos esforçamos muito para cumprir os ideais que a cultura determina para termos um lugar de sucesso no mundo (contém ironia). Aqui, o outro que é nosso semelhante, tem uma função muito importante, e problemática, pois é ele quem nos mostra o que é gostoso, o que dá prazer, o que também devemos querer. É um referencial, um modelo. Enquanto nas indústrias anteriores temos figuras que ocupam um certo status de saber sobre algum ponto, e com isso nos colocamos como obedientes às suas ofertas, na indústria do lazer, são aqueles que, como nós, estão apenas vivendo experiências. E, como estamos no mesmo patamar, todos temos o direito a experimentar também. Vocês estão vendo que dentro desse campo dos ditames sociais, não há espaço para o sujeito se voltar para si e pensar quem ele é, o que sente, o que precisa, pois, quando é dito para ele tudo que existe, ele apenas vai tentando se encaixar no que acredita que deve se encaixar, ou seja, na promessa de completude e segurança.
Vejam que complexo esse ponto, especialmente num país com as desigualdades sociais, econômicas e culturais como o nosso. Não há como não se produzir impulsos agressivos e de disputa, inveja ou ressentimento pelas injustiças. Todo esse campo da indústria do lazer é exposto nas mídias sociais de massa. Todo mundo vê.
Aquele termo, FOMO - fear of missing out (medo de perder algo, de estar por fora do que está acontecendo), que entra como mais um modo de controle dos sujeitos. VOCETEMQUE! fazer isso, aquilo e aquele outro. Se não fizer, entra na dúvida sobre sua própria existência. Se não estamos consumindo algo e exibindo esse consumo, como o outro vai saber que a gente existe? Aparece aí, uma voz interna, que traz angústia, culpa, sentimento de inferioridade e menos valia, muito sofrimento psíquico.
Lembrando, todos estamos nessa! Ter consciência disso tudo é um jeito de não baixar a guarda e não acreditar que a gente tem o certo a fazer para ficar tudo perfeito.
Os ditames dos pais, avós, parentes, esses são particulares de cada família. Muito baseados nas histórias vividas, na posição social que ocupam e ocuparam, no que foram as regras culturais nos quais foram criados, nos desejos não realizados. Enfim, em muitas projeções e determinações morais com as quais temos que conviver. Aqui, por mais que essas regras de conduta pessoal, para o laço social, sejam impactantes, elas não têm a força massiva dos ditames da cultura. Digo isso considerando nosso momento atual. No contemporâneo, a fala midiática é muito mais forte do que a fala familiar. Essa é uma mudança gigante que ocorreu e que provoca um mal-estar significativo nos sujeitos.
Vivemos num tempo em que estamos desbussolados, sem um caminho definido e diante de um horizonte expandido. Podemos escolher qualquer coisa e isso dificultou muito todo o processo. É um dos pontos do sem limite, pois quando temos muitas opções, não temos parâmetros para a decisão. Logo, ou escolhe-se nada, ou escolhe-se ‘ficar rico’, que poderia nos dar tudo. Um raciocínio infantil, ancorado num pensamento mágico.
Fora os ditames citados, que são os discursos nos quais nos atrelamos para fazer certo, para viver a vida como ela deve ser vivida, temos ainda as experiências, que muitas vezes, se mostram as mais contraditórias em relação aos imperativos coletivos. É com elas que nossos corpos são impactados, e onde o desejo pode aparecer. São essas vivências que nossa mente tem que codificar, cifrar e entender. Perceber nisso o que faz bem e o que não faz, o que dá prazer ou desprazer, o que dá apetite ou asco. Estabelecer relações com os outros. Criar memórias, registros internos de representações em que exista algum tipo de base para sustentar a existência. Nessa vertente aprendemos a falar e a calar, vamos decifrando o mundo pelo que nos contam dele e pelo que usufruímos dele. Os encontros são estranhos até que nos familiarizarmos com o novo, colecionando vivências que vão definindo quem somos.
Na infância, nossas experiências alimentares basicamente vêm da família e da escola. Aprendemos tudo que é fundamental. Estamos num momento tão abertos e despertos para o novo que registramos tudo de forma muito marcante, pois é o momento em que cada coisa tem a sua vez. Na adolescência, além da família, aparecem os amigos por opção e afinidade. Experimentamos algo diferente e transgressor em relação ao que vivemos antes. Fazemos escolhas, acertando e errando, nos colocando no mundo de forma mais individual. Vamos sentir as exigências e os ditames sociais de forma diferente e precisamos saber como responder a isso. Ainda que essa fase seja mais livre, sabemos que com a pressão das redes sociais, e a ausência dos pais na posição de transmissão de regras, os jovens estão vivendo momentos de maior dificuldade em saber limites e possibilidades de transgressão. Nessa fase, temos importantes encontros com os desejos, especialmente o desejo sexual. Porém, o desejo se destaca da imagem, pois não é que eu deseje algo pela imagem que aquilo tem, mas desejo pelo que desperta em mim. Com a força das exigências midiáticas atuais os jovens precisam ter coisas determinadas para serem desejáveis, eles parecem não ter mais espaço para serem seres desejantes.
Na vida adulta, aprendemos a experimentar menos, a funcionar pela ordem das aparentes necessidades. Vamos obedecer mais aos ditames culturais, nos adequar melhor à imagem que acreditamos que esperam de nós. Aqui carregamos as experiências presentes e passadas com a família, algumas vezes mantemos amizades, outras nos relacionamos com colegas de trabalho, ou pais dos amigos dos filhos, sem ter espaço para experiências novas, a não ser diante de alguma crise. Adultos tendem a viver nostálgicos, como se o tempo tivesse passado e não fosse mais possível viver determinadas experiências.
E na vida dos idosos, em que a família ainda está ali, faltam amigos, há muita solidão. Essa talvez seja a maior experiência que se vive quando envelhecemos, a da solidão e de ter de lidar com a falência do corpo, através das questões fisiológicas ou mentais. É preciso esforço, pois as ofertas de novas vivências diminuem.
Essas experiências todas que vivemos são fundamentais para a construção da nossa subjetividade. Através delas temos a educação do gosto, baseado no que a cultura nos oferece, nos hábitos e padrões que se repetem coletivamente. Compartilhamos modos de experimentar gostos, cores, texturas, definindo nosso paladar. Gostar e não gostar não é algo descolado de uma construção baseada nas relações coletivas e sociais.
Temos também uma educação do gozo, que estabelece o que pode e não pode, o que é impulsivo e o que é excessivo. O gozo tem mais força do que o gosto, pois não se ancora num compartilhamento coletivo, mas nos impactos pulsionais, particulares de cada um. É uma exigência do nosso sistema psíquico. Porém, essa educação do gozo passa pela mão pesada da publicidade, é uma construção determinada por um discurso sem outro, a voz da marca falando ininterruptamente para os sujeitos. Se na educação do gosto, na construção dos sentidos, temos as relações com outros sujeitos, como forma de transitar saberes, no gozo, o que temos é um dispositivo de atuação individual, em que agimos e consumimos independente de ter alguém enlaçado conosco. O individualismo é produto dessa nova condição de poder usufruir livremente daquilo que nos coloca diante de uma satisfação plena. Nesse sentido, nos atrelamos ao mesmo tempo ao que devemos e ao que não devemos.
Há formas de gozo em que o sujeito possa usufruir do que o mundo oferece, sabendo que há um limite para isso, e pode passar pela transa com outros. E há formas de gozo transtornado, compulsivo, em que aquilo que se consome não faz nenhum efeito de satisfação. É o comer solitário, escondido, o comer transtornado. O sujeito busca mais e mais, sem saber o que o faria parar. Por não estar articulado com o que funciona num campo coletivo e compartilhado, num campo simbólico e significante, apenas age numa tentativa de encontrar alguma coisa que dê um alívio para si, ou que dê algum preenchimento para um vazio excessivo.
Nos isolamos em parte para tentar calar essa voz que ordena como devemos ter prazer, satisfação e êxtase, e em parte para nos escondermos dos olhares dos nossos pares, dos nossos semelhantes, que acreditamos nos julgar por fazer algo fora dos deveres. Só lembrando, eles também estão sob o mesmo controle vindo da voz da indústria.
Hoje parte dos estados de ansiedade e compulsão que encontramos nos sujeitos tem a ver com o excesso de comandos contraditórios, exigentes e imediatistas, sem que exista algum tipo de âncora amorosa em que se atar. Eros, o amor nas mais variadas formas que possa existir, é um meio de oferecer algum breque para as compulsões. É no corpo do outro, erotizado, que o sujeito encontra uma espécie de pátria. Precisamos de corpos de verdade, que ofereçam, olhar, escuta, toque, que permitam algum tipo de laço afetivo para refrear as buscas por tudo e nada ao mesmo tempo. E é justamente aqui que o desejo tem seu lugar, nessa falta que o outro faz, quando não pode aparecer num lugar de destino.
Há duas faces do desejo, que podem ser baseadas em 2 fórmulas:
O desejo é o desejo do outro: que significa desejo o outro, desejo o que o outro tem, desejo o que o outro quer, e ainda desejo o que o outro diz que satisfaz.
Mas também há o desejo que é simplesmente o desejo de desejar. O movimento do desejo. O entusiasmo diante do encontro com o desejo. O alívio quando se realiza um desejo e não precisa de mais nada. Esse nada, esse vazio, pós realização do desejo, pode ser uma pacificação subjetiva, porque o sujeito não está mais desejando. E a falta poderá ser sentida novamente diante do reencontro com o desejo.
Se o gozo não pode parar de consumir, de funcionar, o desejo é justamente o que não consome, o que abre espaço, o que faz buscar, mas sem preencher.
Somos serem sociais, vivemos coletivamente, por isso o outro, seja lá quem for, tem uma função para cada um de nós. Nascemos dependendo do outro e assim seguimos, até nossa morte.
Hoje nos isolamos, queremos silêncio e solidão, como forma de podermos estar mais ‘conosco mesmo’. Uma busca de vazio, de espaço, não do outro, mas do grande outro, esse que não para de determinar o que devemos fazer. Esse isolamento que parece que buscamos, pela própria condição em que estamos imersos, com essa exigência em dar as caras para existir, não dura muito, pois aquela voz que angustia, começa a falar novamente dentro de nós, mostrando que não suportamos muito tempo a sós. E aí, cedemos novamente ao grande Outro, fazemos uma selfie para dizer o quanto é bom estar só, ou seja, entrando novamente na roda-viva do gozo, e com isso, na falta de uma brecha que pode ser encontrada pelo desejo.
Desejo não é sobre ‘o quê’ se deseja, mas sobre a função do desejo como forma de vivificar o sujeito, fazê-lo vivo e livre novamente.
Simone de Paula - 20/05/25