"Sob o efeito das drogas, nada importa para você, você só quer se isolar do mundo e alcançar uma paz interior que não se consegue em estado normal."
Kurt Cobain
Nesta resenha comentarei o texto O Silêncio das Drogas, de 2014, escrito por Luis Dario Salamone. Esse artigo consta no livro Tratamento Possível das Toxicomanias com Lacan, de 2014, organizado por Márcia Mezêncio, Márcia Rosa e Maria Wilma Faria.
A escolha desse texto se justifica porque o tema do silêncio vem sendo meu objeto de estudos há alguns anos. Determinadas referências utilizadas pelo autor já foram lidas por mim anteriormente. Através desse texto, pude me aproximar de outros aspectos do silêncio, especialmente a sua relação com a questão das drogas e dos efeitos no tratamento clínico. Além disso, há uma conexão evidente entre esse artigo e os temas discutidos no módulo III.
Salamone (2014) começa destacando o manto de silêncio que recobre a questão das drogas, mesmo que se fale muito desse tema. Aponta que dinheiro, poder e política - acrescento a violência -, ficam em primeiro plano quando se toca nesse assunto. Porém sua investigação tem foco na relação que o sujeito pode manter com a substância tóxica. Ele trabalha com diversos autores: psicanalistas que abordam o silêncio em relação à estrutura psíquica e à clínica; filósofos que o entendem pelo viés da questão humana; artistas que experimentaram o lugar do intoxicado e ainda assim deixaram obras muito especiais no mundo.
Na primeira sessão do texto, intitulada O silêncio do recalque e a supressão tóxica, Salamone (2014) observa que deve haver algo estrutural, que leva o sujeito, através da droga, a silenciar certa problemática de forma tão contundente e radical, que por longo tempo não se fale dela. Isso inclusive no campo psicanalítico. Não é preciso a droga para que o sujeito não fale, isso é próprio do recalque nos sujeitos neuróticos. Porém, o viés da psicanálise propõe algo diferente diante desse impedimento.
Theodor Reik, no seu texto No início é o silêncio, de 1926, apresenta que a própria entrada em análise já é um convite para que a pessoa fale, que saia do silêncio. Nesse mesmo texto, Reik (1926) compara a Zona do Silêncio, - um lugar em Vancouver, no Canadá -, ao recalque. Ali, os comandantes dos navios não podem ouvir nada que venha do exterior. Durante a análise, o sujeito fala através de ecos desse silêncio do recalque. E, a partir da estranheza desse falar, vai se aproximando da impossibilidade própria da estrutura.
Segundo Salamone (2014), apoiado em Freud, com o consumo de drogas, o sujeito apela não apenas ao recalque, para deixar coisas de lado, mas também às substâncias entorpecentes, que são muito eficazes em fazer desaparecer coisas intoleráveis. No princípio, o recurso ao tóxico poderia servir como um auxílio para diminuição da inibição ou da crítica. Porém, ainda que alguém utilize a embriaguez para se livrar do superego, este não tarda em se apropriar desse recurso para fazer o sujeito gozar através disso.
Os conteúdos incômodos, essas questões que o recalque não consegue afastar, encontram, nas drogas, um auxílio poderoso para tal. Esta é uma forma de silêncio que pode ser mais eficaz do que aquela obtida pela via do recalque, sem o tóxico como ajuda. Mas o que ela coloca em jogo tem suas consequências, não há recalque sem retorno do recalcado, não há cancelamento, por mais tóxico que seja, sem que isso retorne de alguma maneira. Até mesmo quando o sujeito atinge uma "supressão tóxica", o recalcado retorna. E, de um modo geral, não se sabe de que maneira. (SALAMONE, 2014, p. 46)
Na segunda sessão, O silêncio das pulsões e aquele do eu, Salamone (2014) avança no campo da estruturação. Começa apresentando a diferenciação que Lacan faz dos termos taceo e sileo (grifo do autor). Taceo é o silêncio que é uma consequência direta de uma palavra não dita, o fato de calar-se. Sileo, pode ser vinculado ao silêncio estrutural das pulsões. É a diferença entre o silenciado, ficar nas sombras, e o silencioso, o mudo, impossível de colocar em palavras, o real de Lacan. A partir daí, existe a possibilidade de pensar o silêncio de outra natureza, não apenas o do recalque, ou o provocado pela substância tóxica. O autor também aponta que Freud faz referências que remetem a essa outra forma de silêncio ligada à pulsão de morte. O gozo calado, que não passa pelo campo da palavra, tem relação com a pulsão de morte, e é nesse campo que o sujeito é colocado pelas drogas.
O termo adicção, sem dicção, sem palavras, é muito apropriado desde a perspectiva aqui colocada. Porém, nos tratamentos que trabalham sob a tônica em que o sujeito que é adicto deve se identificar com essa posição para atingir um controle do tipo egóico, como nos modelos do AA e NA, esse significante também faz eco. Salamone (2014) não coloca em dúvida os benefícios desse tipo de tratamento, pois ele é bem-sucedido, considerando a eficácia. Mas, a proposta psicanalítica segue uma outra direção, pois se sabe que apostar no fortalecimento do eu, num dado momento, se mostrará prejudicial, pois o eu é débil e o gozo não se deixa manipular.
No Seminário 1 (1953-54), Lacan afirma que “o eu está estruturado exatamente como um sintoma” (LACAN,1953-54, p.25, apud SALAMONE, 2014, p.48). Não é estranho que uma pessoa aposte nisso como solução de tratamento. Mas para a psicanálise, o eu se forma através de identificações e tem como base a alienação. Além disso, o eu tem uma relação difícil com o supereu, pois fica submetido aos seus imperativos. E, nos tratamentos que visam o fortalecimento do eu, há uma reprodução dessas coordenadas. A promessa é de que, uma vez que o eu está mais forte, ele conseguiria resistir às tentações. Depois de uma temporada internado, ou em abstinência, o supereu exterior, na figura de um terapeuta ou conselheiro, continua a dizer o que o eu deve ou não deve fazer. Porém, essa lei do supereu, que muitos analistas colocam como uma tomada de consciência, tem sua outra face, que é a lei da destruição, como explicou Lacan (1953-54), a partir da colocação de Freud, sobre a afinidade do supereu com o isso, ou com a pulsão de morte. Lacan adverte que pretender reorganizar essa relação do eu com o supereu é uma tarefa inútil e arriscada.
Freud desenvolve uma lista de questões associadas ao supereu, a reação terapêutica negativa, o sentimento de culpa, a necessidade de castigo (associada ao mesmo), que encontra sua maior manifestação na melancolia, podendo chegar até ao suicídio. Podemos acrescentar a essa lista o consumo das drogas, já que o trabalho analítico nos mostra a associação do consumo com as questões do supereu. O eu é apresentado por Freud como uma coisa pobre submetida às servidões, seja do mundo exterior, do Isso e do Supcreu. O eu é um adulador, oportunista e mentiroso, embora esteja submetido às ordens do supereu, e não tarda em converter-se em uma fonte de angústia, dessa angústia de morte que se cria entre o supcreu e o eu. (SALAMONE, 2014, p.49)
Antes de chegar ao silêncio definitivo, que vem do gozo que conduz à pulsão de morte, temos o silêncio do desconhecimento do próprio eu diante das ações do supereu. É função do eu esse desconhecimento, e por isso, ele mente. No sujeito, sua adicção é sabida, por ele e pelos outros, mas quando confrontado, ele nega. Salamone (2014) apresenta, para dar uma ilustração sobre isso, a fábula do sapo e do escorpião, que tem como síntese a máxima “desculpe-me, não queria fazê-lo, mas não consegui evitá-lo, essa é a minha natureza.” (SALAMONE, 2014, p.50). O eu não pode se haver com a sua própria natureza, sua função de desconhecimento é algo que ele não pode renunciar por muito tempo. O eu não pode aceitar a falta, poderá suportá-la por um tempo, mas voltará a essa recusa, antes de chegar ao campo do desejo. O supereu tem uma relação com a lei, mas uma lei insensata, a lei da destruição, que pode chegar a ser devastadora. Por isso, parece inútil o analista tentar assumir uma posição de supereu exterior auxiliar para dizer o que o sujeito deve fazer. E, justamente por isso, o silêncio do analista pode ser o fundo sobre o qual o sujeito pode reencontrar com o seu dizer, com os ecos de um real que o determina.
Na terceira sessão, O silêncio no tratamento, Salamone (2014) apresenta que o silêncio do analista, por mais que seja sentido pelo analisante como uma espécie de abertura para escutar, deverá leva-lo também a perceber outro silêncio, o estrutural das pulsões, e o que é problemático para ele.
O neurótico irá saindo, então, desse silêncio promovido pelo recalque, redobrado pelo consumo de substâncias; ele voltará a se encontrar com a linguagem para poder, finalmente, enfrentar-se com o silêncio das pulsões, sem sepultá-lo, como tinha feito. (SALAMONE, 2014, p. 52)
No tratamento, a resistência parece ir se deslocando. Inicialmente no próprio silêncio do analista e do analisante, que não reconhece sua adicçao, e não participa do tratamento. Uma vez que ele possa aceder ao tratamento, aparece a resistência que não incide sobre o silêncio estrutural, mas sobre o silêncio conflitivo, levando-o a falar através do sintoma. Na medida em que deixa de consumir, os sintomas aparecem, o que parecia calado, falará no sintoma e poderá ser interpretado, colocando o sujeito novamente em relação ao Outro da alienação, que deverá ser desmantelado. O sujeito passa de uma posição cínica, na qual recusava o Outro com a ajuda dos tóxicos, ao inconsciente, podendo comprovar que esse Outro, com a qual sua neurose se relaciona, não existe. No caminho das drogas o sujeito recusa o caminho do simbólico, recusa o Outro, recusa o inconsciente, tampona a falta, e se coloca num gozo mudo e mortífero. No tratamento, mesmo diante dos limites do simbólico, sabe-se que o Outro é uma construção neurótica diante das pulsões e, a partir daí, se toma decisões, escolhe-se o modo como gozar, como viver.
Salamone (2014), na quarta sessão, Desolação e silêncio, diz que é comum que sujeitos estejam se matando com o consumo de drogas, buscando fugir da morte. Localizar o que está lhe matando pode leva-lo a querer sair. Ele utiliza uma citação de Freud, em Reflexões para os tempos de guerra e morte (2015), que é bem apropriada: "Revelávamos uma tendência inegável para pôr a morte de lado, para eliminá-la da vida. Tentávamos silenciá-la..." (FREUD, 1915/1996, vol. XIV, p.162-181, apud SALAMONE, 2014, p. 54).
O conto intitulado Silêncio, de Edgar Allan Poe, escrito em 1832, é considerado um texto metafísico. Poe teve problemas com álcool e também fumava ópio. Alguns dos seus contos foram escritos sob efeito dessas substâncias e este é um deles. No conto, apresentado como uma fábula, o demônio fala à cabeça do autor, sobre um lugar lúgubre onde não há calma e nem silêncio. No meio desse clima tumultuoso e barulhento, pode-se ler em um rochedo a palavra desolação. Porém, o demônio vê no topo desse mesmo rochedo um homem, que observa silenciosamente toda essa cena sinistra, num semblante de cansaço e tristeza com a humanidade. O demônio então incita mais temor ao homem e provoca uma tempestade violenta, mas o homem permanece suportando tal situação. O demônio então se irrita, cessa todo esse tumulto e lança a maldição do silêncio. Tudo se acalma, a palavra silêncio toma lugar da palavra desolação no rochedo, o homem empalidece e foge. O demônio ri, mas quem escreve a fábula não pode rir com ele.
Salamone, (2014) traz esse conto como uma boa metáfora da pulsão de morte. Entende o homem que se afasta dos humanos como um representante da escola cínica, que vive em desolação, que é amaldiçoado pelo demônio, como qualquer um de nós com nosso próprio superego, que deseja calar o pulsional até chegar num silêncio insuportável, em que o real faz um eco perturbador e então, fugir.
Da desolação, no meio do murmúrio permanente, a esse silêncio intolerável. Esse pode ser o ponto de giro que impulsiona um sujeito que consome drogas a urna tentativa de refazer-se com outro estilo de vida. Que, ao chegar a esse limite, a esse silêncio ao qual atracou, acompanhado pelas drogas, no qual a questão se lhe torna insuportável, decida buscar outro caminho. (SALAMONE, 2014, p. 55-56)
Salomone não pretende esgotar o tema. Esse artigo é um capítulo do seu livro, de mesmo título, lançado em 2015, sem tradução para o português. Porém, o diálogo que ele faz com diversas gerações de autores psicanalistas, bem como com escritores de outros campos, como a filosofia e a literatura, nos mostra uma tranquilidade em poder articular muitas fontes diante de uma questão tão delicada e difícil. A apresentação de aspectos clínicos sob o que pode ser oferecido pela psicanálise, bem como o reconhecimento de que um trabalho focado no fortalecimento do eu, também pode ter alguma utilidade em certos tipos de pacientes, é importante, especialmente porque o tratamento da toxicomania tende a estar misturado com questões de criminalidade, políticas etc. O trabalho do psicanalista é destacar o sujeito desses elementos que não estão sob tratamento, para poder fazer alguma aposta que há saídas do mutismo para um silêncio fundamental e criativo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
POE, E.A. Silêncio (1832). In: Contos. Chicago: Centaur Editions, 2015.
REIK, T. No início é o silêncio. (1926). In: Nasio, J.D. O silêncio na psicanálise, Rio de
Janeiro, Zahar, 2010
SALAMONE, L.D. O silêncio das drogas In: Mezênio, M.; ROSA, M.; WILMA, M. orgs Tratamento possível das toxicomanias. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.