Nesta resenha comentarei o texto Über Coca, de Sigmund Freud, escrito em 1884. Esse texto não faz parte das Obras Completas, mas foi publicado, à época, na revista Therapie. Neste trabalho, utilizei a versão disponibilizada pela Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, nº 26, de abril de 2004, cujo tema é Tóxicos e Manias.
Norteada pela questão sobre substâncias psicoativas e cultura, a leitura desse texto de Freud (1884) parece fundamental para refletir, não apenas sobre os problemas em relação às drogas ilícitas, mas também sobre o desenvolvimento das pesquisas científicas e tratamentos medicamentosos.
O contexto
Na Viena do final do século XIX, médicos e laboratórios testavam diversas drogas para as mais variadas doenças. Freud não estava sozinho nas investigações sobre a cocaína. Porém, nele observamos um entusiasmo além do normal, pois acreditava que essa droga era a panaceia capaz de tratar muitos males, sem causar problemas. E ainda esperava que essa descoberta o levasse a se destacar e deixar um marco para a posteridade.
A figura do cientista que testa novas drogas em si mesmo, e ambiciona o ideal do saber, não é exclusividade de Freud. Temos conhecimento de muitos outros médicos com pesquisas anteriores, sobre o haxixe, por exemplo, e também mais recentes, com o LSD. Diante dos efeitos problemáticos e uso abusivo observados nas experimentações, muitas drogas se tornam proibidas e pesquisas importantes são impedidas de seguirem seu curso, especialmente no tratamento de transtornos mentais, vícios e compulsões. A cocaína passou da solução mágica - incluindo o Vinho Mariani [1] em muitas mesas - para a vilã absoluta, com todo o estigma de ‘droga do diabo’.
O pretexto
Sigmund Freud escreveu Über Coca (1884) aos 28 anos de idade. Ele era um jovem médico, em início de carreira, com muitas ambições. Pretendia fazer uma descoberta que o tornasse famoso e que lhe proporcionasse dinheiro o suficiente para casar com sua noiva, Martha. Viu na cocaína um elixir mágico capaz de tratar de muitos problemas fisiológicos e psíquicos, mas principalmente, tratar morfinômanos.
Nos anos em que pesquisou e utilizou a cocaína, Freud ainda não tinha inventado a psicanálise, mas certamente concebeu muitas ideias a partir dos efeitos da droga no seu corpo. Alguns biógrafos, especialmente Ernest Jones, tendem a amenizar a questão da experiência de Freud com a droga, inclusive dizendo que ele a teria abandonado logo que percebeu seus efeitos contraditórios. No entanto, as cartas trocadas com seu amigo Wilhelm Fliess e com sua noiva Martha Bernays, revelam que o uso da cocaína esteve presente por cerca de 15 anos na vida de Freud. Alguns críticos são mais ácidos e acusam Freud pelo excesso de negação em relação aos fracassos de tratamentos com o uso da cocaína. Muitas vezes ele culpava o próprio paciente de abusar da substância.
Os textos pré-psicanalíticos e as cartas mostram um Freud mais humanizado em contraste ao mito, que ainda persiste em torno da sua figura na nossa cultura. Freud era um homem com crises nervosas acentuadas, além de um frequente estado depressivo. O uso da cocaína, sem dúvida, interferiu na confiança do jovem médico, permitindo-lhe produzir e apresentar muitos escritos e descobertas no tratamento dos transtornos mentais. Freud tinha uma condição psíquica forte o bastante para ele mesmo não se tornar um dependente da cocaína, mesmo que sempre tenha admitido o vício nos charutos (nicotina), que ele não largou até a sua morte.
O texto
Über Coca (1884) é uma monografia sobre a planta coca. A palavra alemã über tem muitos sentidos: pode significar o que está acima, mas também indica a superioridade de algo. É um prefixo usado para intensificar, falar de excesso, mas também pode se referir a algo transcendental. A escolha que Freud faz para o título desse trabalho – Über Coca – já indica sua opinião sobre a substância.
Freud inicia o texto apresentando a planta de coca, descrevendo suas características físicas. Depois, segue pelo aspecto histórico e seu uso no país de origem, o Peru. Utiliza relatos dos conquistadores espanhóis, que viam nos povos nativos a recorrência do uso da planta de coca no cotidiano. A erva também era usada em rituais de caráter mitológico, ligados à cultura Asteca. Freud discorre sobre os modos de consumo da coca entre os indígenas, e observa que, quando os conquistadores proibiram seu uso entre os nativos, houve uma mudança de ânimo na população local, especialmente entre aqueles que trabalhavam para os espanhóis. Com a revogação da proibição, os efeitos voltaram a se manifestar: força, energia, longos períodos de trabalho, pouco consumo alimentar, vigor sexual, etc.
Freud não levantou nenhum questionamento sobre os aspectos cruéis envolvendo a exploração humana, que são descritos por antigos autores europeus. Ele relata que os espanhóis incentivavam os nativos a usar coca, para obter melhor desempenho no trabalho – o que, sabemos, era um trabalho escravo. Ele descreve como algo normal, pacífico, uma camaradagem entre conquistadores e conquistados. “Existem amplos indícios de que, sob o efeito da coca, os índios podem suportar provações excepcionais e executar trabalhos pesados, sem necessitar de alimentação adequada durante todo o tempo.” (FREUD, 1884, p.104).
No terceiro capítulo, Freud fala da chegada das folhas de coca na Europa. Começa pelos textos datados do século XVI, em que espanhóis relatavam os efeitos prodigiosos da planta. Depois, passa para 1749, quando a planta foi levada para a Europa, e foi descrita, classificada e incluída na enciclopédia de botânica, com a menção especial de que os efeitos não se restringiam à “raça índia”. Durante a segunda metade do século XIX, houve uma expansão significativa das pesquisas e usos da coca. A partir de 1859, iniciaram-se diversas experiências e relatos dos efeitos fisiológicos e o uso terapêutico da droga. Nesse período, se isolou o alcaloide cocaína. Nessa parte do texto, Freud entra no campo da química e descreve longamente o desenvolvimento da droga, com pesquisas em animais e em humanos.
Analisando os efeitos relatados em pesquisas com animais, os pesquisadores começam a entender os modos de uso e quantidades da droga, percebendo que os efeitos variavam: ora estimulavam, ora provocavam paralisias: “... somente Schroff se refere à cocaína como narcótico, qualificando-a junto com o ópio e a cannabis, ao passo que quase todos os outros a classificam com a cafeína, etc.” (FREUD, 1884, p. 110). Isso é importante, pois Freud, quando está experimentando a cocaína, detecta o efeito anestésico que a droga provocava, mas não enveredou por esse caminho, pois seu foco estava na cura para estados depressivos e abstinência da morfina.
Quando Freud entra no capítulo dos efeitos da cocaína sobre o corpo humano saudável, ele utiliza tanto a documentação que tem à disposição, quanto os aspectos objetivos e subjetivos das experiências que ele está fazendo em si mesmo, utilizando a droga.
Durante esse primeiro teste, experimentei um curto período de efeitos tóxicos, que não reapareceram em experiências subsequentes. A respiração ficou mais lenta e profunda, e sentia-me cansado e sonolento; bocejava com frequência, sentindo-me um tanto apático. Após alguns minutos começou a euforia real da cocaína, iniciada por repetida eructação refrescante. Imediatamente após tomar cocaína, notei um leve retardamento do pulso e, mais tarde, um aumento moderado. (FREUD, 1884, p. 110)
Ele tende a dar bastante atenção à posologia e à descrição de efeitos físicos e psíquicos, indicando a diversidade de tratamentos possíveis com o uso da cocaína. Isso faz da droga o elixir milagroso para a cura de todos os males. Ele tem um tom que vai se tornando bastante entusiasmado, quase eufórico, nessa parte do texto. Além disso, ele insiste muitas vezes em dizer que a droga não levaria o usuário a querer mais, chegando a mencionar até certa aversão. Esse tipo de afirmação precoce, tem um certo tom de negação, especialmente pelo caso do amigo Fleischl [2] , e deu os elementos necessários para as críticas que ele recebeu. Freud teve que responder publicamente a acusação de Erlenmeyer, que afirmava que ele era um médico que divulgava, defendia e promovia a “terceira praga da humanidade.”
...uma primeira dose ou mesmo doses repetidas de coca não provocam desejo compulsivo de utilizar mais o estimulante: ao contrário, sente-se uma aversão imotivada à substância. Essa circunstância talvez explique parcialmente por que a coca, apesar de algumas entusiasmadas recomendações, não se firmou na Europa como estimulante. (FREUD, 1884, p. 114)
Freud encerra o texto indicando as utilizações terapêuticas da cocaína: a) o efeito estimulante; b) seu uso para distúrbios digestivos; c) para tratar a caquexia, ou seja, a patologia que causa a perda de peso e massa muscular, em função de doenças graves [3]; d) o tratamento de vícios em morfina e álcool, utilizada como medicação para aliviar os sintomas de abstinência; e) tratamento da asma e enfermidades da faringe, baseado em relatos de outros pesquisadores; f) o efeito afrodisíaco e o aspecto de virilidade; g) o caráter anestésico na aplicação local, sobre a pele e a mucosa.
Extratextos
Para a análise deste trabalho utilizei dois livros que se debruçam sobre a questão. O primeiro é Freud e a Cocaína (2014), de David Cohen, e o segundo é Um Affair Freudiano (1989), de Oscar Cesarotto. Cohen é jornalista e psicólogo britânico, autor de livros sobre psicologia, psicanalise e biografias. Cesarotto é psicanalista, escritor e professor argentino, que se dedica à psicanalise contemporânea e de orientação lacaniana. O interessante do comparativo dos dois autores, vai além das informações preciosas e complementares para a leitura de Über Coca (1884). O estilo de escrita deles é notável. Os significantes escolhidos a dedo, ora teórico-jornalístico, no caso de Cohen, ora teórico-clínico, no caso de Cesarotto, mostram que, ainda que utilizem o mesmo material de pesquisa, podem levar o texto para caminhos diferentes. Cohen se coloca numa posição de esclarecimento e quase denúncia. Já Cesarotto, tende a ser mais poético, com jogos de palavras, incluindo aspectos mais subjetivos que deixam o texto com uma narrativa quase ficcional. De qualquer forma, ambos se posicionam como comentadores críticos e realistas sobre o caso.
Vários trabalhos foram feitos no sentido de recuperar as informações desse período, sem intuito de difamar ou absolver Freud, mas buscando levantar dados e informações importantes, tanto sobre as experiências quanto os efeitos na obra posterior. Freud destruiu várias anotações e correspondências desse período, porque acreditava que poderiam ser problemáticas no caso de ter um biografo escrevendo sobre ele no futuro. Ainda hoje há material produzido por Freud que não pode vir à público.
Da mesma forma que Freud, seus colegas médicos estavam em busca de drogas que dessem conta dos males daquela época, contando com a colaboração intensa da indústria farmacêutica. Hoje, vemos nos consultórios psiquiátricos discursos assertivos sobre novas drogas e possibilidade de melhora absoluta. No entanto, o que os pacientes relatam, é que se sentem como cobaias nas mãos dos profissionais da medicina, pois o que encontram, sob a promessa do remédio perfeito para curar a doença, é um sem fim de efeitos colaterais, e poucos resultados na melhora dos sintomas. No entanto, há duas diferenças importantes entre o momento atual e a sociedade contemporânea a Freud. Hoje a indústria é muito mais voraz do que no final do século XIX e início do século XX. Além disso, o paciente confiava no médico, que era um representante do saber sobre o corpo e a mente humanos. Hoje, a desconfiança sobre o saber do médico vem em primeiro lugar, mesmo que o saber científico ainda se faça absoluto.
Notas:
1. O vinho Mariani era uma bebida feita com vinho de Bordeaux e extrato de folhas de coca, criada em 1863. Tinha várias propriedades terapêuticas, especialmente ânimo e vigor. Teve muita popularidade, mas devido a efeitos contraditórios e a proibição da cocaína, sua produção foi descontinuada.
2. Ernest Fleischl foi um médico, amigo de Freud, que era viciado em morfina em decorrência de uma dor crônica contraída por uma cirurgia malsucedida na mão. Além de amigos, Freud constantemente contava com empréstimos de dinheiro de Fleischl e tentou insistentemente tratar sua dependência de morfina com cocaína. Porém, Fleischl abusava das duas substâncias e morreu precocemente em decorrência do vício.
3. Hoje temos o óleo de Cannabis como forma de auxiliar os pacientes oncológicos durante o tratamento de quimioterapia.
Referências bibliográficas
CESAROTTO. O. Um affair Freudiano – os escritos de Freud sobre a cocaína. São Paulo: Iluminuras, 1989.
COHEN, D. Freud e a cocaína - a história do uso da droga nos primórdios da psicanálise. Rio de Janeiro: ed. Record, 2014.
FREUD, S. Über Coca (1884). Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre: n. 26, p. 100-126, abr. 2004.