sábado, 6 de junho de 2009

Viver o corpo do outro

O atraso no post foi intensional.

Ontem fui assistir a peça do Contardo Calligaris, "O homem tarja preta" e queria trazer algumas impressões.
A peça é muito boa: texto, ator, suporte psicanalítico garantindo situações possíveis e cotidianas, humor...
Bem escrita, bem dirigida, bem atuada.
Muita coisa me chamou a atenção, mas algo se destacou por uma notícia que eu tinha lido mais cedo.
O personagem, num dado momento, diz que se vestindo de mulher, ele consegue "saber" o que é ser alguém do outro sexo.
Aplacando a angústia de não se saber quem é o si mesmo? Talvez...

A notícia que se aproxima disso é que a atriz Anne Hathaway está se preparando para interpretar um homem numa peça e estava andando sempre com meia na região do pênis e que estaria vendo o mundo completamente diferente a partir dessa nova condição.
Net Movies no Twitter - Laboratório: Anne Hathaway usa calça com enchimento frontal para interpretar homem

http://gente.ig.com.br/materias/2009/06/03/laboratorio+anne+hathaway+usa+calca+com+enchimento+frontal+para+interpretar+homem+6492906.html">

Como é que isso funciona? Por que essa ânsia por estar num outro corpo, viver o corpo do outro, saber exatamente como esse outro se sente consigo mesmo?
Mais uma vez o significante corpo aparece nesse blog, trazendo possíveis significações e reflexões.

Na infância, uma brincadeira muito comum é usar roupas e sapatos da mãe ou do pai. Isso é muito saudável, pois auxilia, através da fantasia, a criação das identidades. Geralmente a menina se identifica mais com a mãe e o menino com o pai. Mas, nada impede a criança de experimentar "a roupa do sexo diferente".

Na adolescência, quando essa dinâmica de identificações volta com muita força, também fica evidente a busca por um modelo que "vista" bem.

Na vida adulta, as pessoas acabam deixando de lado esses momentos de fantasia e devaneio, criando uma imagem de segurança e certeza. Apesar disso, através da literatura, teatro, artes em geral, é possível sentir emoções aceitas na infãncia e continuar seguindo a vida adulta com a imagem esperada socialmente.

No entanto, hoje, esse contato com fantasias e devaneios está limitado à televisão e à internet, diminuindo a diversidade de personagens e ressaltando uma suposta realidade vivida por um outro que se garante pela tela mágica do vídeo.

Voltando para nossos dois objetos e as questões de experimentar o corpo do outro, penso que em um tempo de múltiplas possibilidades de viver os prazeres sexuais, experimentar a sexualidade, a fantasia dá lugar a viver na realidade aquilo que se supõe desejar. À medida que o "corpo" se liberta dos dispositivos sociais de limites, as fantasias se empobrecem e as demandas por atuar aumentam.

As expressões artísticas trazem sempre uma antecipação do que ocorre socialmente. Menos por sugerir uma moda a seguir e mais por perceber nos pequenos traços coletivos uma tendência que já está em andamento.
Tanto na peça brasileira, como no laboratório da atriz americana, temos aí a fantasia presente, permitindo transitar entre o proibido e o permitido, mas, no entanto, elas trazem claramente um sintoma preocupante, pois enquanto as pessoas fantasiam menos e atuam mais, elas se frustram e angustiam muito mais, se distanciam da grande possibilidade humana que é a de simbolizar e viver analogias e criatividade.
Com isso, infelizmente, se recorre a medicamentos para aplacar a dor de não saber.