O texto abaixo é uma produção para o grupo Corpo (en)CenaSP, em tempos de pandemia do Covid-19.
O projeto Corpo (en)Cena, vinculado à Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), acontece no Sul num formato que inclui a presença de artistas para trabalharem seus processos criativos. E em São Paulo, nos encontramos mensalmente para discutirmos textos e artistas, seguindo as intersecções entre Psicanálise e Arte.
Em função do isolamento que vivemos nesse ano de 2020, estamos impedidos de nos encontrar presencialmente. Em Porto Alegre as atividades estão suspensas e no núcleo São Paulo, tentamos nos ajustar através das plataformas de encontros virtuais. Para dar Corpo ao corpo que falta em presença, combinamos de produzirmos textos que instiguem e provoquem reflexões sobre esse momento.
Foto de João Becker
Do silêncio ao Riso
As marcas do nosso tempo estão em tudo que nos rodeia, afinal, a
existência se dá a partir dos nomes com que chamamos as coisas. Cada realidade
é significada a partir da língua que designou como cada objeto chama, e nesse
sentido, o sujeito precisa encontrar um espaço para se manifestar.
Crise sempre há, dentro ou fora de nós. Afinal, dentro e fora é só um
jeito de estabelecer limites para a continuidade que abrange o campo da
linguagem.
Em meio a uma pandemia, tivemos que reorganizar os modos de vida,
espaços e existências. Tentamos dar o mesmo nome e destino para o que antes
estava definido por um certo modelo. Mas essa tentativa é sempre uma
aproximação. Nossas vidas, que antes buscavam o isolamento para ter escolhas
pessoais exclusivas, possibilitando maiores modos de prazer, agora deram lugar
a inúmeras formas de reunião, querendo estar junto mais do que nunca. É preciso
falar, ver, tentar tocar através de palavras e gestos, uma vez que se evidencia
o quanto os corpos não estão presentes.
O bar virtual, o ensino à distância, o trabalho remoto, são as novas
montagens que possibilitam manter as atividades cotidianas e ainda assim mirar
no outro. As fotos incessantemente publicadas nas redes sociais, mostrando
prazer e sucesso nas conquistas individuais (mesmo que acompanhada de outros),
parecem não ter mais razão de ser. Agora, as câmeras ficam fechadas para que
não se veja o rosto sem maquiagem ou o ambiente íntimo mal arrumado e dividido
com aqueles com quem se habita uma casa.
A angústia da proibição em encontrar, beijar, abraçar, pegar, aparece na
intransigência em seguir as normas sanitárias. Por trás desse aparente descaso
com a proteção pessoal, está a dificuldade em não se saber se o outro está lá.
Esse outro pode garantir que se exista enquanto alguém que é validado pelo que
se tornou. As identidades caem quando não percebemos o olho do outro nos
olhando, confirmando que estamos ali.
A falta desse corpo do Outro, que parece uma extensão do nosso próprio
corpo, provoca um silêncio na protorrelação que estabelecemos com nossos
semelhantes. Não é um silêncio de pausa que engata uma nova palavra, mas uma
espécie de vazio, revelando que o Outro não está lá. A incerteza sobre o ser,
aliada ao vazio do lado de lá do espelho que o outro sustenta, nos leva ao mais
básico dos nossos afetos, desperta uma infinidade de choros e apelos em vão. O
silêncio se transforma em irritabilidade. Na ânsia de aliviar o desprazer desse
desencontro, reencontramos com algo que já tínhamos esquecido que existia, uma
espécie de nada. Agiganta-se a necessidade de se livrar do desprazer.
Comigo também tem acontecido assim e escolhi dar o nome de raiva para
isso.
Tenho participado de encontros virtuais com amigos, um grupo que
pratica meditações e mindfulness. Combinamos de fazer num sábado um mini retiro
do silêncio. Aquela coisa que funciona bem saindo do nosso habitat natural e
indo para a natureza, isolada. Agora, com o isolamento em casa mesmo, o retiro
dos que se retiram, se passa no mesmo ambiente em que tudo acontece há mais de
cem dias. E seguimos.
O dia começou cedo, lento e chuvoso. O meu humor era oscilante entre a
melancolia que acompanhava a cor cinza do céu e a guerra produzida na minha
cabeça, destruindo com palavras quem não consigo destruir de forma real. Corpo e mente ativados por afetos que
nem sei por que são causados.
As meditações ficaram sem silêncio. A angústia alarmante da mente aumentava
o volume da raiva, e o corpo aflito pedia: me mexe! Obedeci, mexi. Ou a raiva cai, ou ela dói. A raiva se foi. Em
parte era energia contida, direcionada para quem eu escolhi por naquele lugar
de alvo e oponente. O pensamento fluiu
melhor como o ar nas minhas narinas. Parece que com isso um silêncio afetivo se
instalou, um espaço ao invés do acúmulo anterior. Parte do desprazer não estava
mais colado em mim. Mas ainda eu não estava conectada de fato, estava meio
deslocada. Um tipo de tristeza se deu quando a raiva passou.
No fim da tarde, na reunião com outro grupo, encontrei Mullá Nasrudim. Esse sim, me mudou.
Nasrudim é um sábio sufi, do império seljúcida, contador de histórias
humoradas, com estilo de parábola, que provocam o efeito cômico. O jogo de
ideias nos leva além do riso fácil, imediato. A estrutura das anedotas permite
que cada piada possa ser interpretada e reinterpretada. Funcionam como trabalho
de linguagem, em que a própria lógica mostra que a realidade é tão particular
como nossa mente. A rapidez com que mistura as diversas camadas simultâneas
condensadas ali, garante o efeito de chiste e despertam novos destinos no
percurso do pensamento.
Naquele sábado, Ele veio das Arábias para o ocidente, através da voz
potente de um mago. Era a voz que
carregava o olhar para outro lugar. O interpretante desse cenário revela que na
tradição oriental quem conta um conto de Nasrudim deve contar sete. O espírito
místico atravessou as palavras, invocou um Outro destino aos afetos despertos. Na
primeira anedota, eu apenas sorri. Cheguei à sétima, com o riso solto e alegre.
Quando o encontro se encerrou, eu realmente era outra.
Não saberia dizer o que aconteceu, só observei que aconteceu. Mais do
que perseguir o caminho que o pensamento trilhou, prefiro saber que novos
caminhos ele percorreu.
Se não encontrei o silêncio pela manhã - aquela quietude que poderia
despertar novos destinos para meus pensamentos, afinal eu estava em guerra com
o Outro - no fim da tarde encontrei o riso – que brinca com ideias, palavras,
sons e imagens, articulando dois universos que devidamente embalados pelos meus
afetos, criam novos humores, provocam novos amores.
Fiquem com Nasrudim:
Quando o dono do restaurante disse que o mendigo teria que
pagar a fumaça da carne, Nasrudin pegou um saco de moedas de ouro, sacudiu-o
perto da orelha do homem e perguntou:
– O que você está
escutando?
– O tilintar das
moedas.
– Muito bem, –
disse Nasrudin – esse é o seu pagamento. O som das moedas é um ótimo pagamento
para o cheiro da carne. Caso encerrado.
Simone
de Paula
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