O texto abaixo foi escrito para o grupo Corpo (en)Cena, fazendo a palavra circular entre pares e alguns outros.
Por fim, a palavra
por Simone de Paula
Uma questão universal retorna aos palcos da vida toda vez que a palavra falha diante do mal que escancara a impotência humana: eliminar o que contraria crenças e opiniões, saneando o mundo.
Isso reflete um aspecto impactante de nossos tempos: frente aos limites do excesso de exposição a que estamos demandados, as chamadas políticas do linchamento, ou cancelamento virtual, visam a morte de quê?
É no espaço público que a cultura se constrói e se compartilha. Regras e normas são experimentadas fora dos domínios privados, onde a censura mostra a sua face moral, muitas vezes cruel. Mas ao mesmo tempo, os laços entre as diferenças são estabelecidos com a mediação simbólica transmitida entre seres falantes.
As operações de linguagem oferecem as condições de representação para dar conta dos afetos humanos, evocando criação e figurabilidade, para as questões da existência, extrapolando a literalidade das aparências, diversificando o sentido único do imaginário. Essa qualidade funciona como uma alternativa à visão plana com que tendemos ler os fatos do mundo.
É próprio da criança e do artista utilizarem as formas de representação para dar vida aos seus impulsos primitivos, colocar num espaço lúdico as paixões e os medos, estabelecer os limites da relação com o outro. Um escritor trabalha com elementos recorrentes do campo social, oferecendo um debate, através da linguagem. O modelo do diálogo, que pela própria estrutura já inclui a duplicidade, traz a polissemia da palavra, mesmo que para isso, sejam necessários dois personagens dizendo coisas afins e opostas ao mesmo tempo.
Porém, temos visto com mais frequência, cenas que seguem na contramão dessa possibilidade com a palavra. Na política do cancelamento, o que se intenta é a eliminação da diferença dos sentidos, uma verdade única sobre o certo e o errado, deveres e obrigações, inibição do impulso ao questionamento e consequente anulação do sujeito.
É o pensamento totalitário, que através de práticas de intimidação, que se intensificam diante da resistência, partem do ataque verbal, podendo chegar à violência física, e até mesmo à morte. A linha de chegada é o fim da existência. Eliminar o outro, que não ecoa a voz de comando com a qual a massa se identifica, é a forma mais habitual de destruir sujeitos e apartar ainda mais a potência da palavra como mediadora das diferenças e produtora de novos sentidos.
A palavra dá bordas, dá corpo, delimita um espaço em que se diga algo, não tudo. Porém, essa mesma palavra, pode promover confinamento, determinar uma barreira tão estreita, que a pessoa, na impossibilidade de dialogar com outro, toma a si mesma como referência da verdade. Essa contradição é própria da condição humana e para que o sujeito tenha espaço de existência, precisa transitar entre esses dois polos: um solitário e outro múltiplo, polo das diferenças. O absoluto é o infinito e, ao mesmo tempo, o fim.
O nosso imaginário comporta a história que aconteceu no passado. Somos produto do nosso tempo, mas experimentamos através da memória gravada nos fragmentos deixados pelos antigos, o que é da ordem universal que ainda ressoa em nós.
Seja nas ruas, nos palcos de teatro, nas salas de cinema, ou mesmo nas telas de televisão, o que se veicula são ficções, cenas que simulam a realidade, como forma de expor várias faces de uma mesma questão. Mesmo nos chamados reality shows, o que temos é a apresentação de uma história, com pessoas-personagens, que sustentam um certo imaginário coletivo que chamamos de realidade. A realidade não é o real, pois já é codificada de forma a significar algo para aqueles que transitam por ela. O nome reality show traz a dupla face da realidade, que não se encerra no fato que foi apresentado, mas também transmite uma versão interpretada desse fato, uma representação atravessada pela nossa subjetividade e pelo discurso da moral vigente. A inclusão da palavra show agrega o espetáculo, a produção artística. E ainda, os dois termos são ligados por um hífen invisível, que impede um de funcionar sem o outro para poder dizer o que se deseja. São pessoas de carne e osso interpretando as suas próprias identidades.
Parece que o que salta, fica destacado dessa configuração, é o discurso que sustenta o espírito totalitário: extrapola os limites da tela que enquadraria uma ficção declarada, intentando determinar uma nova ordem moral, de identidades estanques veiculando o novo modo de ser no mundo.
É próprio das mudanças culturais, das rupturas dos paradigmas, algo que escapa ao simbólico, expressando-se apenas no ato em direção aos novos rumos que se almeja. O impulso social se direciona ao que se imagina ser algo melhor, uma evolução, maior liberdade e mais direitos a todos. Esses movimentos são legítimos, mas parecem buscar no modelo fundamental da expiação pública, através da agressividade e da intimidação, a forma de fazer mudar o que não funciona mais. Porém, a mudança só é possível a partir de um novo simbólico operante, uma nova fala que faz dialogar os sujeitos.
Gostaria que esse texto pudesse ter um tom mais poético, mas o tema é por demais cru para que se possa embelezar isso que estamos vivendo.
Então, recorro a dois escritores, artistas das palavras, para terminar nas vias da poesia:
“Busco na realidade aquele ponto de inserção da poesia que é também um ponto de intersecção, um centro fixo e vibrante onde as contradições são anuladas e renascem sem trégua.” -Octavio Paz - Os signos em rotação
“Qualquer ideia que te agrade,
Por isso mesmo... é tua...
O autor nada mais fez que vestir a verdade
Que dentro de ti se achava inteiramente nua…” - Mário Quintana, In: Poesias.
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