O texto abaixo foi apresentado na palestra de abertura do núcleo a-riscado, núcleo de estudos lacanianos, do Instituto D'Alma, que aconteceu em 23/6/21.
O que é a Voz
Escolhi o título desta palestra inspirada pela antiga coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense. Alguns de vocês vão lembrar desses livrinhos que tinham o intuito trazer uma síntese sobre algum tema, sem almejar a conceituação definitiva, apenas a abertura para novos estudantes.
O curioso dessa coleção é que temos 2 versões d’ O que é Psicanálise, afinal, a psicanálise não busca chegar numa unificação de ideias, mas provocar a cisão das certezas, propor desarranjos, e visa diálogos possíveis. Digo possíveis porque abrir um diálogo é justamente dar lugar ao outro, aquele da diferença, do desconhecido, da surpresa. E isso dá um trabalho e tanto.
A partir dessa curiosidade, já introduzi o tema da Voz.
Por que duas versões sobre um mesmo tema? O desacordo entre os autores!
Fábio Hermann, psicanalista autor da primeira versão, foi durante muito tempo o presidente da SBPSP, ligada à IPA, mantendo as regras deixadas por Freud, seguidas à risca pelos membros das associações espalhadas pelo mundo. Na segunda versão, os autores Oscar Cesarotto e Márcio Peter de Souza, também psicanalistas, o primeiro argentino e o segundo brasileiro, estavam à frente da EBP, que transmite a psicanálise nos moldes lacanianos de ensino. Já dá para ver que não existiria um consenso entre eles. Que voz estava por trás do discurso que cada um entendia que deveria apresentar a psicanálise? Mais do que ideias diferentes, há culturas diferentes nas formações desses homens e sujeitos marcados pelas suas experiências de formação. A Voz falou, convocou os sujeitos. Não foi uma encomenda da editora, mas a reivindicação dos autores para que a psicanálise conservasse o seu principal fundamento - não ser unívoca, ou seja, não há apenas uma voz que pode falar sobre isso. Primeiro o desacordo (proposto por vociferações?), depois a cisão,e por fim o diálogo (possibilidade de fazer uma versão diferente sobre o mesmo tema e manter as duas disponíveis para os leitores). A história da psicanálise se repete a cada anedota que contamos sobre psicanalistas.
Vou fazer uma breve exposição sobre a Voz na psicanálise, para nos localizarmos em relação a essa diferença significante entre o que entendemos por Voz, como um órgão fonador, e o que temos como Voz no campo psicanalítico. Não pretendo ser por demais técnica, visto que esta palestra, nem nos dá tempo para isso e nossa audiência é híbrida, nem todos são do campo da psicanálise.
Quando escutamos a palavra voz, naturalmente somos remetidos ao audível, ao sonoro. O fenômeno da voz humana, aquilo que se dá à nossa consciência, portanto ligado ao nosso sentido auditivo, não responde às questões que a psicanálise se coloca quando há um desencontro entre o que foi emitido e o que é escutado.
Hoje tem sido muito comum, pelo excesso de psicologização com o qual convivemos, a frase: eu sei o que eu disse, o que você escutou é problema seu. Alto lá! Para a Comunicação, responsável pela mensagem é o emissor, porque este deve encontrar os meios de dizer aquilo que quer de forma a ser entendido. Se o receptor não entendeu, quais são os ruídos que existem aí?
Bem, a psicanálise não trata da comunicação entre sujeitos, porém, há algo desse desencontro na própria estruturação psíquica de nós enquanto sujeitos divididos, sujeitos da fala, sujeitos do inconsciente. Não é o sujeito com o outro semelhante, mas é o sujeito com o grande Outro, tentando dar coerência ao que diz.
Nomeamos Voz uma das faces do objeto pequeno a. Quando pensamos em objeto na psicanálise, não estamos falando de uma coisa, que existe na realidade material, mas estamos falando daquilo com que lidamos no campo da fantasia, aquela figura com a qual nos relacionamos como forma de compor a nossa existência. Estou simplificando as coisas aqui, mas é um modo de apontar isso. Buscamos satisfação através desse objeto. Se estivermos no campo da necessidade, para fome teremos comida. Mas, para os campos de demanda e desejo, a satisfação (impossível de ser atingida, por isso nosso mal-estar enquanto humanos), visa o objeto, mas precisa de significantes, palavrinhas, embaladas em gozo, para poder tentar atingi-lo. As zonas erógenas, destacadas no corpo, se relacionam com esses objetos virtuais, algumas delas coincidindo com nossos sentidos corpóreos, por isso se faz tão importante distinguirmos a questão daquilo que faz parte da audição e o que faz parte da invocação, que nos cabe na psicanálise. É lógico que as pessoas ouvem, mas elas ouvem o quê?
Nasce o bebê - eu tenho um vício de voltar ao bebê quando pretendo ilustrar conceitos psicanalíticos, mesmo que as coisas não se passem como um desenvolvimento. Porém, me parece um meio de apresentar as coisas, especialmente porque queremos aqui chegar no prato principal da nossa palestra: Arthur Bispo do Rosário. O bebê está imerso nos sons ao seu redor. Desconhecido e caótico, apenas um som ininterrupto, perturbador, vociferante. Como não se fecha o ouvido, ali ‘não há esfincter’, é preciso uma operação do bebezinho para fazer calar aquilo que não para de falar. É o rádio do vizinho. Fazer uma cisão, abrir um espaço vazio naquele barulho ensurdecedor. Essa operação, Jean Michel Vivés, nomeou de ponto surdo. É preciso criar um ponto surdo, que para Vivés é uma espécie de recalque originário daquela zona, para poder realmente ouvir algo. Com esse dispositivo, ou seja, por poder fazer calar, nos separamos daquele objeto que estava acoplado ao nosso corpo e passamos a lidar com ele, na tal composição da fantasia. Recalcado, próximas operações seguem. Agora o bebê consegue fazer calar para poder falar e escutar.
Vemos aquelas cenas idílicas, de mãe e bebê na formação da linguagem através das prosódias, estabelecendo um encontro afetivo através dos sons. Nesse momento, as misturas do timbre, dos sons e silêncios, das vogais ininterruptas, tramando uma teia de suporte para os significantes que constituirão o sujeito. Fonemas que se transformam em sílabas, que são repetidas pela mãe e pelo bebê, definindo as atribuições de sentido para aquilo que era só um modo de vocalizar. Os significantes vão se tornando palavras, que o bebê registra e precisa discernir entre os significados que são ditos sobre eles. E ainda, os significantes de alto valor psíquicos que permanecem inconscientes, fomentadores de faltas e desejos.
“Que se diga fica esquecido detrás do que se diz no que se ouve”, frase enigmática de Lacan, que depois de décadas de estudo, nos parece a fórmula mais exata para um conceito tão delicado, cheio de dobras, contornos, velamentos e revelações. Barroco, eu diria. Essa frase parece um bom guia do estudo aprofundado sobre a Voz, que possivelmente desenvolveremos no futuro.
A Voz ficou lá atrás, como um objeto perdido nesses encontros e desencontros, intraduzível, mas atiçando a vocalização, sendo buscada quando ouvida sem se saber que foi ela que falou em nós.
O
neurótico, mantém o objeto longe, flertando com ele, tentando alcançá-lo, mas
sabendo que ele está separado. Já o psicótico, esse carrega o objeto no bolso,
sempre ali, juntinho de seu corpo.É comum vermos psicóticos com o radinho no ouvido, colado ao ouvido, porque assim ele sabe de onde vem a voz que ele não para de ouvir.
Sujeitos estruturados na neurose, dialogam com eles mesmos, supondo que essa voz faz parte deles, entendida como pensamento. Já na psicose, a voz vem de fora, como se alguém estivesse dizendo aquilo que parece ser escutado com o ouvido. É muito comum os pacientes psicóticos, através dos seus delírios de caráter religioso, ouvirem a voz de deus.
E com isso, passamos ao Bispo.
https://clinicadacultura.blogspot.com/2020/06/arthur-bispo-do-rosario.html
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