Nesta resenha pretendo comentar o texto “Enigma, Objetivação
e Diluição da Loucura”, 2017, dos autores Sérgio Laia e Adriano Amaral de
Aguiar, que faz parte do livro Patologia Lacaniana I: semiologia, citado pelo
professor Leonardo de Miranda Ferreira, durante a aula sobre Estruturas
clínicas: neurose, psicose e perversão.
No texto, os autores apresentam um percurso
histórico das imagens da loucura, embasados nos estudos feitos por Michel
Foucault, no seu tratado sobre o tema, intitulado História da Loucura.
Eles nos mostram
como sujeitos, não enquadrados numa razão socialmente vista como normal, foram
sendo retratados através dos tempos, e as conseqüências dessa questão.
Partem dos séculos XV e XVI, pelas pinturas de Bosh
e Bruegel, que contemplam isso que chamamos vulgarmente de loucura, na
expressão da deformação dos corpos, incluindo o enigma que comporta essa
condição humana. Nesse período, há algo trágico, místico, enigmático, na manifestação
da loucura. A partir do Renascimento, com a retomada do lugar de destaque no Humano,
o que ultrapassa o Homem deverá encontrar um viés inteligível, decifrável,
capturando assim o mais além da subjetividade. Sobre isso Aguiar e Laia (2017)
dizem:
No início do século XVII, todo o enigma e toda a
dimensão trágica que inundavam as imagens de um Bosch ou de um Bruegel passaram
a ser deslocados para uma região de sombras e de silêncio, diante da força dos
discursos que pretendiam objetivar a loucura. (p. 11)
Com a chegada da Idade da Razão, faz-se necessário
substituir a significação esotérica e religiosa pelo entendimento científico e
racional. Ainda não havia uma sistematização do campo médico sobre a loucura,
apenas um discurso higienista, que visava tirar das ruas aqueles que escapavam
às leis e transgrediam a moral. Através da criação do Hospital Geral, pelo rei
Luís XVI, aconteceu o chamado ‘grande enclausuramento’, com um invólucro de
cuidado e atenção.
Porém, na metade do século XVIII, esse sistema prisional
já sofria muitas críticas e um novo estatuto para a loucura foi criado,
passando para as mãos da classe médica, se separando e individualizando em
relação aos outros sujeitos classificados sob o signo da desrazão.
Essa modificação acontece concomitante ao
desenvolvimento do capitalismo. Isso se faz importante, pois é condição
fundamental para a separação dos loucos dos demais transgressores. Para o
sistema capitalista funcionar, era preciso aumentar a mão de obra. Muitos
desajustados voltam ao campo social e são colocados em postos de trabalho. Há
também interesses políticos envolvidos quando se trata de tomar, os agora
chamados doentes mentais, pelo viés do tratamento terapêutico. Sobre isso,
AGUIAR e LAIA (2017) comentam:
Foucault ([1961] 1972) consegue dar assim um golpe
mortal no ufanismo dos historiadores da medicina que viam no surgimento da
psiquiatria, com Pinel e seu humanismo terapêutico, um gesto libertador. Para
eles, a psiquiatria teria finalmente possibilitado que a loucura fosse
reconhecida e tratada segundo sua verdade, ou seja, sua natureza de doença. (p.
12)
A clausura permanecia, agora através da definição
feita pelo discurso médico.
Somente no final do século XIX, começo do século
XX, com Freud, é que a loucura pode ter um resgate do local onde tinha sido
colocada.A forma dele entender os sintomas e manifestações como uma ordem
subjetiva e inconsciente, por efeito da repressão, ofereceu um novo lugar ao
sujeito, menos alienado ao discurso moralizante e proibitivo em que vivia.
Já nos meados do século XX, teremos o psiquiatra e
psicanalista Jacques Lacan, contemporâneo de Foucault, avançando nos estudos
sobre a doença mental, como forma de restituir um espaço de trabalho com esses
pacientes. Os autores Aguiar e Laia(2017) apresentam a teorização feita por
Lacan através dos estudos de linguagem, dos conceitos de nome-do-pai e
foraclusão, oferecendo um entendimento diferente para essa estrutura clínica, a
psicose. E, como se trata de um artigo
da clínica psicanalítica de orientação lacaniana, trabalham com mais cuidado
essa questão.
Eles avançam nesse sentido e incorporam um elemento
bastante significativo dos nossos dias, a indústria, que agora está acoplada ao
discurso da saúde mental, estabelecendo novas drogas no controle dos corpos.
Não são mais apenas os doentes mentais os objetos de classificação e candidatos
à medicalização, mas todos os sujeitos que apresentam algum tipo de desconforto
e inadequação ao cumprimento dos ditames culturais e sociais na atualidade.
Toda e qualquer pessoa é hoje foco dos interesses da indústria e alvo atingido
pelo trabalho de marketing feito por profissionais especializados em construir
necessidades que não existem.
A invenção e a arte da clínica desaparecem, deixam
de estar do lado do médico e se transformam em produção dos medicamentos e seus
protocolos pela indústria farmacêutica. Amedicina torna-se, ela mesma,
industrializada; e os medicamentos devem ser eficazes independentemente do
médico e de qualquer relação terapêutica particularizada. (...) Trata-se de uma
rearticulação que implica não apenas um novo modo deexercício da medicina, mas
também um novo modelo de doença.A medicinaatual não se ocupa das doenças apenas
quando elas impedem o funcionamentonormal dos organismos. Ela se encarrega de
um monitoramento constante dosfatores de risco que abarcam dimensões cada vez
mais extensas das nossas vidas (AGUIAR e LAIA, 2017, p. 20)
O sujeito humano, submetido ao controle social, não
pode mais fugir às regras, como forma de experimentar seus desejos, e se
esforça para cumprir os papéis aos quais foi designado.
Essas alterações são possíveis, segundo os autores,
pelo desenvolvimento do sistema capitalista, que precisa de pessoas disponíveis
para fazer parte do corpo de trabalho. Nesse sentido, não ter eficiência, por
conta de algum estado emocional, mental ou físico,ter/ser um distúrbio,causa um
desalinho no sistema.
É interessante acompanhar, desde o título escolhido
para o artigo,o deslocamento metonímico que opera tais mudanças, tanto no lugar
em que o sujeito é colocado, da rua à instituição psiquiátrica e ao atual
controle medicamentoso, bem como os nomes pelos quais ele será designado, como
uma metáfora identificatória, quem ele é no meio social, louco, desajustado,
doente mental, psicótico, e por aí vai.
Na Antiguidade e Idade Média, é um enigma[1] na
cultura e assim produzindo-se como enigmático. Depois sendo colocado numa
caixa, o chamado asilo para os loucos e alienados, excluído, enclausurado,
pária social. Então, deslocado desse lugar, ganhando um novo estatuto
decifrável, um objeto de investigação e nomeação, sem possibilidade de
escapar ao saber médico-psiquiátrico, inclusive podendo ainda ser confinado em um
manicômio, colocando assim a carga de doença mental mais delimitada. Por fim,
seguindo pela diluição daquilo que já lhe foi particular, mais um entre
tantos, ou nenhum, apenas transformado em dados estatísticos, falta ou excesso
de bioquímicos, até chegar a ser um elemento genético.
A escolha por esse texto foi feita a partir de duas
questões que me são carasno trabalho na clínica psicanalítica, não exatamente
pelo exercício com psicóticos, mas como o atual discurso da saúde mental e
bem-estar, associado às ofertas da indústria farmacêutica, está atravessando o
processo de análise.
A primeira questão é o quanto os sujeitos estão
mais massacrados pelo discurso da performance, que carrega um significado de
bom desempenho no trabalho, superação. Com isso vemos a eliminação, pouco a
pouco, da condição criativa que restituiria algum tipo de particularidade,
diferenciação, a esses sujeitos. O termo performance, já esteve do lado da
encenação, da vivência artística e hoje se deslocou para um exercício de
supremacia. A interpretação de algum tipo de personagem, vivência de fantasias,
agora está no dia-a-dia, representa-se a própria vida, como num palco teatral.
E a segunda, é que a cada dia é mais comum algum analisaste
chegar à sessão dizendo ter ido ao psiquiatra para conseguir algum tipo de
diagnóstico – solução / medicamento -para a dificuldade em ter uma vida mais
plena. Esse assunto não entra em análise como uma questão, mas chega como uma
informação como tantas outras que relatam durante o tempo da sessão. Com o
passar dos meses, com o uso da medicação, entendem que precisam dizer que estão
bem melhores, menos depressivos ou ansiosos, mais focados. Porém, isso não
parece refletir algo verdadeiro naquilo que apresentam, mas revela algum tipo
de enigma.
A pergunta que sucede é, essa resposta positiva
significa que há uma demanda em manifestar um acerto do discurso médico? Realmente
sentem algo mais brando, que nem sempre se revela nos seus semblantes? Muitas
vezes, os analisantes passam a ter a fala um pouco menos enriquecida de
significantes encadeados que promovam uma elaboração dos pontos traumáticos e
complexos. É mais difícil desenvolverem uma linha associativa diante de alguma
intervenção. Respondem apenas de forma curta, sintética e fechada.
Por outro lado, quando sai um véu ameaçador de
descontrole absoluto, aprisionamento aos afetos que promovem turbulências,
muitos deles acham algumas saídas melhores, mesmo que isso se dê pela inclusão
de um medicamento. Podem falar com mais calma das situações e ir entendendo sua
forma particular de olhar e ouvir o mundo, e comoisso podeser trabalhado. As
questões que os impedem de se mover, são aliviadas. Começam novas atividades
que antes nem conseguiam imaginar.
O problema aparece no momento em que a retirada da
medicação acontece, pois tendem a encontrar novamente com aquele estranho neles
mesmos e voltam rapidamente para o remédio.
Um ponto que me parece recorrente e relevante nesse
sentido, especialmente acompanhando o texto dos autores, é a condição da
fragmentação, que permanece, seja pelos lugares e nomes com que os sujeitos são
delimitados, seja pelas soluções apresentadas para isso. O sujeito se depara
com sua divisão, se aflige diante daquela fragmentação pela qual já passou num
momento precoce de sua existência, busca formas de reparar isso, reencontrando
o júbilo da imagem completa, se encontrando com essa identidade consistente que
o eu busca. E um novo round se inicia, diante de um desencontro com a
totalidade. Eis a repetição.
Ainda acompanho casos em que as idas e vindas do
medicamento estão em curso. Aguardo para poder avaliar se esse movimento de
alienação e separação do remédio, numa ida e vinda desse estado de amparo e desamparo,
promovido pela medicação, associada ao processo analítico, levaria o sujeito a
poder, em um determinado ponto da vida, lidar com seu sintoma, já conhecido
como seu, sem a necessidade de uma droga permanente.
Como psicanalistas, entendemos a importância do
trabalho de elaboração com os restos e fragmentos com os quais o sujeito humano
se depara. Porém, isso não pode ser tomado pela lógica da performance, do
tique-taque do tempo, pois com isso, nos enquadraríamos na mesma posição de
exigência de algum tipo de modelo de trabalho.Assim como nossos analisantes, ou
pacientes, somos sujeitos do nosso tempo, contemporâneos a eles. Porém devemos
observar criticamente, em busca de algum tipo de separação dos apelos feitos
pelo discurso corrente sobre nós. É através da clínica e da percepçãodos
deslocamentos culturais que podemos conseguir algum olhar menos dominado pelo
padrão atual. Como analistas, sabemos que é preciso soltar a corda com a qual
nossos analisantes chegam atados. Acompanhar seus movimentos permitindo que
eles encontrem algum tipo de rede se proteção nos significantes que possa
ampará-los, um saber que possa se revelar e permitir que experimentem mais o
desconhecido dos seus destinos.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
LAIA, S. e AGUIAR, A. A. Enigma, objetivação e diluição da loucura. In Patologia Lacaniana
I: semiologia/ organizadores Antonio Teixeira e Heloisa Caldas. 1.ed. - Belo
Horizonte: Autentica, 2017
[1] As palavras enigma, objeto e diluição, foram grifadas, pois se referem aos termos designados pelos autores no título do artigo, indicando o deslizamento da imagem da loucura através dos tempos.
Obs.: esta resenha foi apresentada como conclusão do módulo I, do curso de pós graduação em Transtornos Alimentares, Psicanálise e Cultura.
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