sábado, 30 de dezembro de 2023

O deslizamento do significante da loucura

 

Nesta resenha pretendo comentar o texto “Enigma, Objetivação e Diluição da Loucura”, 2017, dos autores Sérgio Laia e Adriano Amaral de Aguiar, que faz parte do livro Patologia Lacaniana I: semiologia, citado pelo professor Leonardo de Miranda Ferreira, durante a aula sobre Estruturas clínicas: neurose, psicose e perversão.

No texto, os autores apresentam um percurso histórico das imagens da loucura, embasados nos estudos feitos por Michel Foucault, no seu tratado sobre o tema, intitulado História da Loucura.

 Eles nos mostram como sujeitos, não enquadrados numa razão socialmente vista como normal, foram sendo retratados através dos tempos, e as conseqüências dessa questão.

Partem dos séculos XV e XVI, pelas pinturas de Bosh e Bruegel, que contemplam isso que chamamos vulgarmente de loucura, na expressão da deformação dos corpos, incluindo o enigma que comporta essa condição humana. Nesse período, há algo trágico, místico, enigmático, na manifestação da loucura. A partir do Renascimento, com a retomada do lugar de destaque no Humano, o que ultrapassa o Homem deverá encontrar um viés inteligível, decifrável, capturando assim o mais além da subjetividade. Sobre isso Aguiar e Laia (2017) dizem:

No início do século XVII, todo o enigma e toda a dimensão trágica que inundavam as imagens de um Bosch ou de um Bruegel passaram a ser deslocados para uma região de sombras e de silêncio, diante da força dos discursos que pretendiam objetivar a loucura. (p. 11)

 

Com a chegada da Idade da Razão, faz-se necessário substituir a significação esotérica e religiosa pelo entendimento científico e racional. Ainda não havia uma sistematização do campo médico sobre a loucura, apenas um discurso higienista, que visava tirar das ruas aqueles que escapavam às leis e transgrediam a moral. Através da criação do Hospital Geral, pelo rei Luís XVI, aconteceu o chamado ‘grande enclausuramento’, com um invólucro de cuidado e atenção.

Porém, na metade do século XVIII, esse sistema prisional já sofria muitas críticas e um novo estatuto para a loucura foi criado, passando para as mãos da classe médica, se separando e individualizando em relação aos outros sujeitos classificados sob o signo da desrazão.

Essa modificação acontece concomitante ao desenvolvimento do capitalismo. Isso se faz importante, pois é condição fundamental para a separação dos loucos dos demais transgressores. Para o sistema capitalista funcionar, era preciso aumentar a mão de obra. Muitos desajustados voltam ao campo social e são colocados em postos de trabalho. Há também interesses políticos envolvidos quando se trata de tomar, os agora chamados doentes mentais, pelo viés do tratamento terapêutico. Sobre isso, AGUIAR e LAIA (2017) comentam:

Foucault ([1961] 1972) consegue dar assim um golpe mortal no ufanismo dos historiadores da medicina que viam no surgimento da psiquiatria, com Pinel e seu humanismo terapêutico, um gesto libertador. Para eles, a psiquiatria teria finalmente possibilitado que a loucura fosse reconhecida e tratada segundo sua verdade, ou seja, sua natureza de doença. (p. 12)

 

A clausura permanecia, agora através da definição feita pelo discurso médico.

Somente no final do século XIX, começo do século XX, com Freud, é que a loucura pode ter um resgate do local onde tinha sido colocada.A forma dele entender os sintomas e manifestações como uma ordem subjetiva e inconsciente, por efeito da repressão, ofereceu um novo lugar ao sujeito, menos alienado ao discurso moralizante e proibitivo em que vivia.

Já nos meados do século XX, teremos o psiquiatra e psicanalista Jacques Lacan, contemporâneo de Foucault, avançando nos estudos sobre a doença mental, como forma de restituir um espaço de trabalho com esses pacientes. Os autores Aguiar e Laia(2017) apresentam a teorização feita por Lacan através dos estudos de linguagem, dos conceitos de nome-do-pai e foraclusão, oferecendo um entendimento diferente para essa estrutura clínica, a psicose.  E, como se trata de um artigo da clínica psicanalítica de orientação lacaniana, trabalham com mais cuidado essa questão.

Eles avançam nesse sentido e incorporam um elemento bastante significativo dos nossos dias, a indústria, que agora está acoplada ao discurso da saúde mental, estabelecendo novas drogas no controle dos corpos. Não são mais apenas os doentes mentais os objetos de classificação e candidatos à medicalização, mas todos os sujeitos que apresentam algum tipo de desconforto e inadequação ao cumprimento dos ditames culturais e sociais na atualidade. Toda e qualquer pessoa é hoje foco dos interesses da indústria e alvo atingido pelo trabalho de marketing feito por profissionais especializados em construir necessidades que não existem.

A invenção e a arte da clínica desaparecem, deixam de estar do lado do médico e se transformam em produção dos medicamentos e seus protocolos pela indústria farmacêutica. Amedicina torna-se, ela mesma, industrializada; e os medicamentos devem ser eficazes independentemente do médico e de qualquer relação terapêutica particularizada. (...) Trata-se de uma rearticulação que implica não apenas um novo modo deexercício da medicina, mas também um novo modelo de doença.A medicinaatual não se ocupa das doenças apenas quando elas impedem o funcionamentonormal dos organismos. Ela se encarrega de um monitoramento constante dosfatores de risco que abarcam dimensões cada vez mais extensas das nossas vidas (AGUIAR e LAIA, 2017, p. 20)

 

O sujeito humano, submetido ao controle social, não pode mais fugir às regras, como forma de experimentar seus desejos, e se esforça para cumprir os papéis aos quais foi designado.

Essas alterações são possíveis, segundo os autores, pelo desenvolvimento do sistema capitalista, que precisa de pessoas disponíveis para fazer parte do corpo de trabalho. Nesse sentido, não ter eficiência, por conta de algum estado emocional, mental ou físico,ter/ser um distúrbio,causa um desalinho no sistema.

É interessante acompanhar, desde o título escolhido para o artigo,o deslocamento metonímico que opera tais mudanças, tanto no lugar em que o sujeito é colocado, da rua à instituição psiquiátrica e ao atual controle medicamentoso, bem como os nomes pelos quais ele será designado, como uma metáfora identificatória, quem ele é no meio social, louco, desajustado, doente mental, psicótico, e por aí vai.

Na Antiguidade e Idade Média, é um enigma[1] na cultura e assim produzindo-se como enigmático. Depois sendo colocado numa caixa, o chamado asilo para os loucos e alienados, excluído, enclausurado, pária social. Então, deslocado desse lugar, ganhando um novo estatuto decifrável, um objeto de investigação e nomeação, sem possibilidade de escapar ao saber médico-psiquiátrico, inclusive podendo ainda ser confinado em um manicômio, colocando assim a carga de doença mental mais delimitada. Por fim, seguindo pela diluição daquilo que já lhe foi particular, mais um entre tantos, ou nenhum, apenas transformado em dados estatísticos, falta ou excesso de bioquímicos, até chegar a ser um elemento genético.

A escolha por esse texto foi feita a partir de duas questões que me são carasno trabalho na clínica psicanalítica, não exatamente pelo exercício com psicóticos, mas como o atual discurso da saúde mental e bem-estar, associado às ofertas da indústria farmacêutica, está atravessando o processo de análise.

A primeira questão é o quanto os sujeitos estão mais massacrados pelo discurso da performance, que carrega um significado de bom desempenho no trabalho, superação. Com isso vemos a eliminação, pouco a pouco, da condição criativa que restituiria algum tipo de particularidade, diferenciação, a esses sujeitos. O termo performance, já esteve do lado da encenação, da vivência artística e hoje se deslocou para um exercício de supremacia. A interpretação de algum tipo de personagem, vivência de fantasias, agora está no dia-a-dia, representa-se a própria vida, como num palco teatral.

E a segunda, é que a cada dia é mais comum algum analisaste chegar à sessão dizendo ter ido ao psiquiatra para conseguir algum tipo de diagnóstico – solução / medicamento -para a dificuldade em ter uma vida mais plena. Esse assunto não entra em análise como uma questão, mas chega como uma informação como tantas outras que relatam durante o tempo da sessão. Com o passar dos meses, com o uso da medicação, entendem que precisam dizer que estão bem melhores, menos depressivos ou ansiosos, mais focados. Porém, isso não parece refletir algo verdadeiro naquilo que apresentam, mas revela algum tipo de enigma.

A pergunta que sucede é, essa resposta positiva significa que há uma demanda em manifestar um acerto do discurso médico? Realmente sentem algo mais brando, que nem sempre se revela nos seus semblantes? Muitas vezes, os analisantes passam a ter a fala um pouco menos enriquecida de significantes encadeados que promovam uma elaboração dos pontos traumáticos e complexos. É mais difícil desenvolverem uma linha associativa diante de alguma intervenção. Respondem apenas de forma curta, sintética e fechada.

Por outro lado, quando sai um véu ameaçador de descontrole absoluto, aprisionamento aos afetos que promovem turbulências, muitos deles acham algumas saídas melhores, mesmo que isso se dê pela inclusão de um medicamento. Podem falar com mais calma das situações e ir entendendo sua forma particular de olhar e ouvir o mundo, e comoisso podeser trabalhado. As questões que os impedem de se mover, são aliviadas. Começam novas atividades que antes nem conseguiam imaginar.

O problema aparece no momento em que a retirada da medicação acontece, pois tendem a encontrar novamente com aquele estranho neles mesmos e voltam rapidamente para o remédio.

Um ponto que me parece recorrente e relevante nesse sentido, especialmente acompanhando o texto dos autores, é a condição da fragmentação, que permanece, seja pelos lugares e nomes com que os sujeitos são delimitados, seja pelas soluções apresentadas para isso. O sujeito se depara com sua divisão, se aflige diante daquela fragmentação pela qual já passou num momento precoce de sua existência, busca formas de reparar isso, reencontrando o júbilo da imagem completa, se encontrando com essa identidade consistente que o eu busca. E um novo round se inicia, diante de um desencontro com a totalidade. Eis a repetição.

Ainda acompanho casos em que as idas e vindas do medicamento estão em curso. Aguardo para poder avaliar se esse movimento de alienação e separação do remédio, numa ida e vinda desse estado de amparo e desamparo, promovido pela medicação, associada ao processo analítico, levaria o sujeito a poder, em um determinado ponto da vida, lidar com seu sintoma, já conhecido como seu, sem a necessidade de uma droga permanente.

Como psicanalistas, entendemos a importância do trabalho de elaboração com os restos e fragmentos com os quais o sujeito humano se depara. Porém, isso não pode ser tomado pela lógica da performance, do tique-taque do tempo, pois com isso, nos enquadraríamos na mesma posição de exigência de algum tipo de modelo de trabalho.Assim como nossos analisantes, ou pacientes, somos sujeitos do nosso tempo, contemporâneos a eles. Porém devemos observar criticamente, em busca de algum tipo de separação dos apelos feitos pelo discurso corrente sobre nós. É através da clínica e da percepçãodos deslocamentos culturais que podemos conseguir algum olhar menos dominado pelo padrão atual. Como analistas, sabemos que é preciso soltar a corda com a qual nossos analisantes chegam atados. Acompanhar seus movimentos permitindo que eles encontrem algum tipo de rede se proteção nos significantes que possa ampará-los, um saber que possa se revelar e permitir que experimentem mais o desconhecido dos seus destinos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LAIA, S. e AGUIAR, A. A. Enigma, objetivação e diluição da loucura. In Patologia Lacaniana I: semiologia/ organizadores Antonio Teixeira e Heloisa Caldas. 1.ed. - Belo Horizonte: Autentica, 2017

 



[1] As palavras enigma, objeto e diluição, foram grifadas, pois se referem aos termos designados pelos autores no título do artigo, indicando o deslizamento da imagem da loucura através dos tempos.

Obs.: esta resenha foi apresentada como conclusão do módulo I, do curso de pós graduação em Transtornos Alimentares, Psicanálise e Cultura.



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