Pesquisa e transmissão do saber psicanalítico sobre os Transtornos Alimentares
Nesta resenha pretendo comentar e articular dois textos
relativos às disciplinas de compulsões alimentares: obesidade, anorexia e
bulimia. O primeiro é “A compulsão de comer”, das autoras Lia Amorim e Maria
Amélia Martins Sant’Anna, que faz parte da revista Ágora, volume II, nº 1, de
1999, citado pela professora Cristiane Seixas, durante as aulas sobre compulsões
alimentares. E o segundo, “Anorexia e bulimia, um transtorno alimentar: não se
trata disso”, dos autores Tatiana Mattos do Amaral e Roberto Assis Ferreira,
que faz parte da revista Médica Minas Gerais, volume 18 (4, suppl 1), de 2008,
que consta na pasta de artigos compartilhados, referente à disciplina da
professora Fernanda Pimentel.
O interesse pelos textos se deu pelo aspecto do
trabalho clínico como suporte para pesquisa e produção no campo psicanalítico. Através
de casos de pacientes que portam transtornos do comer, que pela complexidade
interrogam clínicos das mais variadas especialidades, o material produzido pelos
autores considera o que há além e aquém do sintoma. Propõem algum tipo de
solução clínica para as questões psíquicas.
Como patologias do nosso tempo, com especificidades
lógicas relativas ao contemporâneo, o trabalho com pacientes com transtornos
alimentares pede multidisciplinaridade. Além disso, há de se ter disposição dos
profissionais em se flexibilizar da conduta rígida de suas práticas, para que
pacientes e familiares consigam se deslocar das posições fixadas em que se
encontram em relação à doença. Com efeito, apostamos que algum tipo de mudança
subjetiva se dê. Evidentemente é preciso que exista o pedido expresso do
paciente para que o tratamento tenha uma certa aderência. Porém, são casos que
geralmente carregam urgências em suas expressões. Por isso, muitas vezes os
pacientes são trazidos para a clínica pelos familiares. O início do trabalho
passa por construir uma transferência, possibilitar que a queixa familiar venha
para a boca do paciente, como um sintoma, para aí então a queixa se tornar uma
questão analítica. Assim, poderemos ter um caso clínico. Considerando que a passagem
ao ato é uma realidade entre os pacientes posicionados nas citadas patologias,
é imprescindível que o trabalho seja minucioso e que se considere o fator tempo
como fundamental para observar efeitos e resultados.
No primeiro texto, Amorim e Sant’Anna (1999) investigam
a questão do comer na obesidade e quais as saídas possíveis no tratamento com
sujeitos nessa condição. O texto, estruturado em três partes, tem a primeira
direcionada para a palavra compulsão, que além de constar no título do artigo,
também é o elemento disparador e enigmático na questão investigada. A segunda
parte, apresenta, a partir da perspectiva de Freud e da neurose obsessiva, os
elementos estruturantes da obediência a um comando[1] no
ato de comer: o sujeito ora permanece na hesitação, ora vai para a passagem ao
ato. E na terceira parte, avançam para as possibilidades de tratamento, através
dos quatro discursos que fazem laço social, propostos por Lacan. Com isso, formalizam
os movimentos do obeso. Além disso, propõem saídas para as atuações nas crises
de devoração. Mais ainda, oferecem uma escolha possível a partir de um trabalho
de análise.
No segundo texto, Amaral e Ferreira (2008),
apresentam suas considerações acerca do trabalho com pacientes anoréxicas e
bulímicas, em instituições de saúde. Mostram a importância de uma equipe
multidisciplinar nesses casos mais difíceis. E ainda, contam com o suporte
teórico de autores, que se debruçam nos estudos sobre essas patologias. A
apresentação do texto segue o modelo padrão de pesquisa. Utilizam a introdução
e a conclusão apenas para indicar ao leitor do que se trata o artigo. Fora
isso, também seguem uma divisão em três partes, sendo a primeira destinada a
apresentar a pesquisa, com a metodologia utilizada e o tema escolhido. A
segunda, com exemplos clínicos comentados, através de fragmentos dos casos
estudados, apenas no que interessa para a questão debatida. E a terceira, com resultados
e discussões sobre o assunto. Insistem que o processo psicanalítico tem foco no
um a um, na singularidade de cada sujeito. Porém, afirmam também que alguns
aspectos são recorrentes e, mesmo que não se sintetize os casos pelo que
carregam de semelhanças, também não se pode deixar de lado as particularidades
que concernem a determinadas condições físico-mentais, e os sintomas que se
repetem e caracterizam tais casos.
O objeto de estudo do texto “a compulsão de comer” (AMORIM
E SANT’ANNA, 1999) é o obeso. Mesmo que a compulsão possa se apresentar na
bulimia, com as orgias alimentares seguidas de sono ou purgação. Amorim e
Sant’Anna (1999) afirmam que a palavra compulsão não revela a lógica no
interior da força coercitiva que leva uma pessoa a ações ou ideias fixas, próprias
dos fenômenos enquadrados sob o termo compulsão. Na verdade, se trata de um
complexo. “A compulsão pressupõe um comando, que,
antes de mais nada, é um barulho de fundo, contínuo e tão ruidoso na vida do
sujeito, que já não é mais localizável.” (AMORIM e SANT’ANNA, 1999, p.122)
A partir do texto “notas sobre um caso de neurose
obsessiva”(1909) de Freud, as autoras Amorim e Sant’Anna indicam o elemento
mais sofisticado desse complexo, que é a hesitação. Esta se assemelha à
relação do obeso com a comida. Nos mostram a relação de comando/ contra-comando
e hesitação, tal qual apresentada na neurose obsessiva. Assim como o neurótico,
o obeso também se dá conta do absurdo dos pensamentos fixos e contraditórios
que vêm como ordem do Outro. E, é justamente no esforço contido nesse impasse,
que se localiza o gozo que têm o obeso. Porém, o absurdo contido nesse vai-e-vem
do pensamento, desmantela a hesitação. Mas o pensamento ainda continua plugado
no comando e isso seda o sujeito que é tomado por um pensamento ob(seda)nte[2].
Amorim e Sant’Anna (1999) ressaltam a questão do
tempo como sustentação da hesitação no pensamento obsedante, na tentativa de
evitar a passagem ao ato, que nomeiam como crise de devoração. Segundo as autoras, se trata aqui de uma
tentativa de apagar a diferença entre os dois termos apresentados no comando /
contra-comando, para não ter que fazer uma escolha. O obeso tenta criar uma
letra única juntando os elementos contraditórios. Falha e cede ao imperativo
“coma!”
Em “anorexia e bulimia, um transtorno alimentar:
não se trata disso” (2008), os autores Amaral e Ferreira escolhem trabalhar com
casos clínicos, em diferentes estágios do tratamento. Com isso, podem
especificar tanto os elementos comuns, quando se trata de bulimia ou anorexia,
como o que cabe a cada profissional envolvido no caso. Amaral e Ferreira estão
em consonância com outros autores que trabalham com os casos difíceis e que
envolvem as patologias da alimentação. Sob o termo “não se trata disso”,
apontam o fracasso da proposta médico-terapêutica normativa da clínica da anorexia e bulimia. Há uma falha epistêmica no saber da
condução dos casos, especialmente, porque são tratados a partir da
universalização do fenômeno, com o restabelecimento do peso através de
reeducação alimentar, em um tratamento com ênfase na medicação.
Amaral e Ferreira (2008) apresentam nove casos clínicos com elementos diversos. Optam
por não designar, ou separar de forma muito discriminativa, cada um dos casos. São
pacientes com estrutura neurótica e psicótica, anoréxicos e bulímicos. Trabalham
com fragmentos retirados de suas falas em diferentes momentos do tratamento.
Aproveitam o discurso preciso para introduzir comentários analíticos sobre a
questão. Apontam um modo de escutar o sujeito que vai além do que o médico ou o
psiquiatra fazem.
Seguem dois exemplos de como interpretam o que se passa no sujeito
que está diante deles. No texto, iniciam com a citação da fala do paciente em
itálico, e depois o comentário do analista.
“Tenho vontade de ter
realmente uma doença física para justificar o que eu sinto.” A questão orgânica
dá uma resposta ao outro e à própria paciente. A doença tratada pelo médico
visa através dos fármacos a eliminação do mal-estar localizado na doença
física. Vítima de uma doença, não precisa saber o que lhe faz mal. (Amaral e
Ferreira, 2008, p.8)
“Não quero ter que responder
nada. Não quero correr risco nenhum. Depois eu resolvo isso.” Ela não quer
dar respostas. Não se implica com o mal estar, mas percebe que as respostas
implicam em mudanças subjetivas, após um certo percurso de tratamento. Voltou a
comer e voltou a estudar. Tenta alguma estabilidade. Continua muito rígida, tentando
fazer existir o seu desejo. (Amaral e Ferreira, 2008, p.8)
Amorim e Sant’Anna (1999) não apresentam casos
clínicos, como Amaral e Ferreira (2008), mas utilizam situações recorrentes da
cultura, como métodos de emagrecimento e grupos de apoio. Aproveitam também o filme “Fatso” (1980), para
exemplificar uma possível forma de sair do comando através da sedução, do
erótico.
Lacan, no seminário 17, traz os quatro discursos do
laço social: discurso do mestre, discurso universitário, discurso da histérica
e discurso do analista. Neles, através de matemas[3], articula
quatro possíveis posições, tanto do lado do sujeito como do lado do Outro, para
mostrar a lógica que opera o funcionamento do sujeito quando faz laço social.
Amorim e Sant’Anna (1999) utilizam esses conceitos
lacanianos para propor saídas na obesidade. Destrinchando a crise de devoração
no obeso, constrõem um discurso extravagante, nomeado “discurso do obeso
referido à crise de devoração”. Isso se trata de uma declinação do discurso
universitário, fazendo notar a inoperância da Lei, que possa barrar o gozo que
o obeso obtém, se deixando invadir pelo comando.
Propõem como uma primeira saída, a Lei que opera no
discurso da histérica, que coloca o saber no Outro, no médico ou no programa de
emagrecimento, por exemplo. Mostram também o discurso do mestre, nos grupos de
apoio de comedores compulsivos, que atribuem o comando a uma força superior.
Porém, é preciso que o obeso permaneça no grupo, ou então precisará de muita
força para manter essa condição de mestria no sobre-humano. Uma outra saída é
através do discurso do analista, que faz semblante de mestre, permitindo que a
Lei esteja em curso, mas oferece ao obeso a chance de encontrar algum meio de
esvaziar o comando e fazer escolhas por si mesmo.
Percebe-se no primeiro texto que as autoras Amorim
e Sant’Anna não colocam o processo analítico como a única via. Apresentam
saídas através de mais de um discurso, oferecendo ao sujeito obeso opções de escolha
nas formas de se enlaçar em um tratamento e reencontrar um lugar na própria
vida.
Diferentemente do artigo sobre a obesidade, em que
as autoras articulam através da teoria meios de trabalho, Amaral e Ferreira nos
dão um amplo panorama dos principais paradigmas da clínica dos distúrbios
alimentícios, pelos pacientes que receberam durante o estudo. Descrevem que as
patologias geralmente são encontradas em mulheres, e desde a adolescência,
indicando as questões da feminilidade. Há também os ditames da cultura que
incidem sobre os sujeitos do gênero[4]
feminino. A anorexia e a bulimia aparecem como duas faces da mesma moeda, onde
a anorexia indica a realização do Ideal do sujeito, enquanto a bulimia representa
seu naufrágio, associado à irrupção do real na cena do Ideal.
Outra consideração, é que o sintoma
anoréxico-bulímico se coloca como função mediadora da distância entre a
satisfação simbólica e o signo do amor. A anorexia pode ser entendida como uma tentativa de separação, de
anteparo contra a invasão do Outro materno. O sintoma anoréxico-bulímico aparece próximo de um vício, como a
toxicomania. Levam o leitor a perceber a complexidade dos sujeitos que assumem
essa condição diante da vida e do Outro, mas não fecham esse saber que
produziram através de orientações terapêuticas, inclusive porque levantam essas
considerações, mas não as desenvolvem além de listá-las.
Como conclusão, Amaral e Ferreira (2008) insistem
no trabalho conjunto com outros profissionais, tanto para não serem seduzidos e
enganados pelas pacientes, coisa comum em casos de anorexia e bulimia, mas
especialmente para que cada um possa se colocar na sua posição devida, com
olhares, orientações, questionamentos, ou seja, assumindo o papel próprio e
dando espaço para o outro fazer a parte que lhe cabe, se concentrando na sua
própria especialidade.
No comparativo entre os textos, podemos encontrar
as especificidades dos casos e das psicopatologias, além da relação dos
sujeitos com o Outro. Com isso, é possível o leitor captar que não se trata do
mesmo, ainda que o caso apresente sintomas semelhantes. Por outro lado, as
patologias não são tão distintas assim, mesmo que carreguem sintomas
completamente opostos. Aproximar os textos permite que possamos fazê-los
dialogar como forma de criar novos meios de trabalhar tais casos. Pensar a
anorexia e a bulimia a partir de derivações dos discursos do laço social, como
Amorim e Sant’Anna (1999) fizeram, pode nos levar a construir esse lugar da Lei,
ou ver se algo de um Outro numa posição de mestria, poderia servir de suporte
para um tratamento mais longevo.
Por outro lado, sistematizar uma pesquisa psicanalítica
com pacientes obesos, pode permitir encontrar características que se repetem
entre eles. Não como forma de catalogação, mas um meio de reunir elementos de
trabalho para escapar do modelo atual de tratamento, relegado aos médicos, que
operam apenas com medicação, cirurgia e privações como forma de ajustar o
sujeito ao meio. Além disso, pode-se conscientizar o sujeito obeso que o caso
exige mais de um profissional conduzindo o tratamento. E assim, ajudá-lo a
evitar a sobrecarga de expectativa que esses sujeitos tendem a colocar em cada
tentativa de emagrecimento.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
AMARAL T.M. e FERREIRA R.A. Anorexia e bulimia: um transtorno alimentar: não se trata disso. In: Revista Médica de Minas Gerais, nov, 2008
AMORIM, L E SANT'ANNA, M.A.M. A Compulsão de Comer. In: Ágora - Estudos em Teoria Psicanalítica - vol. II, Número 1, Rio de Janeiro: Contracapa, 1999.
[1] No texto as autoras utilizam
itálico para a palavra ‘comando’, como destaque da especificidade desse termo
na questão abordada.
[2] A grafia da palavra foi
modificada pelas autoras para ressaltar a operação psíquica que acontece com o
paciente obeso e aparece nos seus atos e fala. A sedação é algo que oculta o
sujeito. Elas ainda conseguem, com esse neologismo gráfico, mostrar a fórmula
lacaniana que apresenta o sujeito do inconsciente, o sujeito da psicanálise:
“um significante representa o sujeito para outro significante que não o
representa”. E ainda, pelo uso de parênteses na palavra ‘seda’, ilustram a
supressão do sujeito diante desse acontecimento que elas estão apresentando.
[3] Matemas são fórmulas concebidas como representações simbólicas de ideias e análises criadas e utilizadas por Jacques Lacan, com o intuito de assegurar a integralidade na transmissão dos seus ensinamentos.
[4] Gênero aqui colocado de forma corrente, sem entrar nas discussões atuais sobre esse termo e conceito.
Obs.: esta resenha foi apresentada como conclusão do módulo II, do curso de pós graduação em Transtornos Alimentares, Psicanálise e Cultura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário