"Sanidade é uma mentira aconchegante."[1]
Susan Sontag
Nesta resenha pretendo apresentar o capítulo 7, do
livro “O que é loucura?”, de Darian Leader (2013). Nessa obra, Leader parte da
premissa de que nem toda psicose é ruidosa como a cultura nos faz acreditar,
através de filmes, livros e séries. A escolha do capítulo 7, intitulado “O
desencadeamento do surto”, foi feita em ressonância com as aulas da professora
Cláudia Henschel de Lima. Tal como Henschel, Leader (2013) traz elementos do
famoso caso Schreber, analisado por Freud, a partir do seu livro
autobiográfico. Além disso, trabalha com outros inúmeros autores, psiquiatras e
psicanalistas, nos mostrando como a psicose vem sendo tratada, e retratada, no
campo da saúde mental.
Leader (2013) inicia o capítulo 7, Desencadeamento
do Surto, com um fragmento de caso clínico, que aponta o momento da ruptura
do elo que mantém um rapaz de 23 anos estabilizado. O toque dos pés no chão,
após o salto de paraquedas, detona a sua psicose. A frase “Eu sou Deus” anuncia
o estado delirante.
Abrir o capítulo dessa forma, foi o recurso usado,
como meio de conduzir o texto, indicando que após tal acontecimento, geralmente
o processo de acolhimento e trabalho com o psicótico nos afasta de uma atenção
mais precisa quanto às etapas envolvidas nesse processo. A observação atenta do
curso do desencadeamento é fundamental para podermos evitar precipitações desse
tipo, ou mesmo trabalharmos de forma adequada, quando a situação já se
deflagrou. Há uma sequência bem definida e é importante que possamos
especificar essas etapas. Apesar disso, Leader (2013), afirma que a maioria das
pessoas psicóticas não experimenta um surto na vida.
A primeira etapa consiste em ter a impressão de que
as coisas mudaram. Há uma vaga ideia de que tudo está errado ou diferente. É
uma mudança na significação do mundo ao seu redor. O processo desencadeado vai
seguindo uma sequência, como uma espécie de efeito dominó[2].
Já nesta primeira etapa, é possível que exista um
retraimento nas relações sociais. E, por isso, nesse momento, a pessoa pode
evitar atividades que antes faziam parte da rua rotina. A preocupação com o que
está acontecendo tira seu interesse das atividades habituais, podendo inclusive
atrapalhar sono e apetite. Isso pode acontecer de forma sutil ou muito direta,
mas está relacionado a essa sensação de que o mundo mudou. É interessante
perceber que o que muda é fora. Isso é um traço da psicose, algo fora do
sujeito que mudou e agora é preciso encontrar o sentido pra isso.
Na segunda etapa, as novas significações que foram
intuídas anteriormente, começam a se dirigir à pessoa. Passam a ser
significações pessoais. As mudanças do mundo concernem ao sujeito. Porém, a
significação real não é clara, o que aquilo quer dizer não é evidente para a
pessoa. É nessa hora que o mundo começa a falar. Tudo começa a falar com o
sujeito. É comum isso ser sentido como diretamente persecutório. Por outro
lado, é possível o sujeito entender que o mundo acabou, que a realidade é vazia
e monótona.
O mal-estar hipocondríaco também começa nesse
ponto, mesmo que seja difícil de descrever. Nessa fase, as mudanças no corpo
ainda aparecem como uma estranheza. O sujeito pode ir atrás de explicações,
através de consultas médicas, informações em livros, ou internet, tentando
entender o que se passa nele. Essa situação tende a ficar mais aguda
posteriormente, quando uma ideia é fixada num ponto específico do corpo.
Segundo Leader (2013), “Enquanto no sujeito paranoico é comum haver a impressão
de que a mudança está ocorrendo no mundo a seu redor, no esquizofrênico é
possível que o corpo seja o primeiro a registrar a ideia de que está havendo
uma mudança” (p.115).
Numa fase posterior, a terceira, essas
significações passam a ser interpretadas. Tudo assume um significado
particular. É importante explorar essas ideias do psicótico porque se tratam
das operações básicas de criação de significado, descobertas para dar novos
sentidos ao mundo que mudou, buscando formas de manter alguma coesão, ou
entender o que se passa. Há uma mobilização de significados para dar conta da
experiência enigmática. Segundo Leader (2013), Lacan nomeia isso de “momentos
fecundos”, que permitem a construção do delírio. Essa fase pode ser longa, mas
também pode nunca acontecer, deixando o sujeito psicótico à mercê dessa
constante tentativa de dar sentidos, achar uma posição ou lugar. Ao invés de
criar um delírio, também é possível que a pessoa atue, através da
automutilação, ou alguma forma de introduzir uma negatividade, uma distância
das forças invasivas. O indivíduo precisa subtrair algo do seu corpo, ou do seu
meio.
Como assinalou Colette Soler, depois da fase
inicial do processo de surto, os esforços dos sujeitos psicóticos deslocam-se
nessas duas direções: acrescentar algo ao mundo, por meio do delírio ou da
criação, ou retirar algo do mundo, por meio da automutilação ou da mudança.
Ambos constituem tentativas de curar a si mesmo. (LEADER, 2013, p. 116)[3]
Após apresentar as etapas do processo de
desencadeamento do surto psicótico, Leader (2013), levanta a questão sobre o que
causaria o disparo dessa sequência. Dá uma primeira resposta, através da
indicação de Lacan, de que o indivíduo teria passado por uma mudança em sua
‘situação vital’. Isso pode significar perda de posição social, aposentadoria,
casamento, divórcio, perda dos pais, etc. Esses são momentos conhecidos como
desencadeadores potenciais. E podem se manifestar com a irrupção de alucinações
ou uma instauração mais silenciosa.
Porém, o que teria de comum nessas situações que
apresentam o rompimento da cadeia significante, que sustenta o sujeito
enquadrado na sua vida? Todos esses momentos levariam a uma mudança na situação
simbólica do sujeito, exigindo que ele assuma um novo lugar. Uma espécie de
rito de passagem. É necessária uma estrutura simbólica bem definida para
processar e passar por essas situações complexas.
Se a ordem simbólica não estivesse internalizada,
não estaria disponível para fornecer uma rede de significações para processar
os momentos de mudança. Em vez do sentido, haveria a experiência aguda de um
buraco. Para Lacan, era esse o buraco que se abria no desencadear do surto
psicótico. Visto que o simbólico se compunha de significantes que eram todos
interligados, quando vinha a sensação de que faltava um termo privilegiado,
seus efeitos se espalhavam pela rede inteira (LEADER, 2013, p.117)
Leader
(2013), segue avaliando o que seria então isso que falta. Mais uma vez inicia
com a conceitualização feita por Lacan. O que faltaria na rede simbólica seria
o que estaria no lugar do pai simbólico, a internalização da lei. Porém,
avançando mais na questão, fundamentalmente, não era apenas a ausência desse
significante que produziria o desencadeamento, mas a convocação desse
significante num ponto em que a pessoa estava inserida numa relação dual
imaginária com Outro. Essa fratura se dava diante de uma situação em que algo,
ou alguém, se intrometia nessa dualidade, exigindo que o sujeito tivesse algum
recurso para se reequilibrar diante do aparecimento de um terceiro.
Mesmo
em situações aparentemente felizes, esse encontro com o elemento desencadeador
pode ocorrer. Não se trata de um estado emocional de júbilo, ou frustração, que
dispararia o processo. É o encontro com uma idéia, que não tem um lugar
simbólico no mundo da pessoa psicótica, que promove essa ruptura. Um elemento
que nunca foi simbolizado pode se impor de fora pra dentro, como formulou
Lacan, “o que foi forcluído no simbólico, retorna no real.” (apud LEADER, 2013,
p. 119)
Leader
(2013) aponta a importância de se ter atenção para o terceiro termo simbólico,
tanto quando se trata do desencadeamento do surto, quanto para a segurança do
paciente. Ele se detém num caso clínico em que, por questões de técnica e
posicionamento da terapeuta, esta optou por ser excessivamente neutra em
relação às questões em que o paciente pedia algum tipo de tomada de posição
dela, deixou escapar que algo pior poderia acontecer. E, realmente ele se
suicidou. Evidentemente isso poderia ter acontecido, mesmo com outra conduta da
analista. Porém, ele apresenta esse caso para introduzir o problema da posição
do terapeuta diante do psicótico durante o trabalho clínico. No entanto, o tema
da direção do tratamento será desenvolvido em outro capítulo do livro.
Os
momentos de surto, como vimos, apontam um apelo ao significante, que deveria estruturar
o nível simbólico, mas não está lá. Porém, também envolve a falta, o buraco na
significação, no significado diante de alguma situação. Isso indica que nem
sempre o desencadeamento acontece somente diante do terceiro. O problema com a
significação, em algumas situações específicas, pode também ser um fator desencadeante.
Isso aparece frequentemente no campo do amor, ou do sexo. No encontro com o
desejo do Outro, o sujeito psicótico pode se ver a mercê de forças
desconhecidas. Sem o respaldo de significação, nem significante que sustente
algum sentido, não há bussola diante do desejo enigmático do Outro.
Os
estados de excitação geralmente são fonte de ansiedade. Porém, a puberdade e a
adolescência, são momentos particularmente muito complexos, que colocam à prova
a estrutura do sujeito. Nessa fase, se junta o apelo social às práticas
sexuais, com as demandas à tomada de uma nova posição no coletivo, E, se uma
significação não foi transmitida, e recebida de forma apropriada, esses estados
tendem a ser problemáticos. Por isso é comum a psicose irromper na puberdade,
ou adolescência, especialmente a esquizofrenia, cujo traço principal é dar
sentido ao corpo. Há uma demanda de sentido que escancara o buraco do
significante forcluído.
Leader
(2013), no intuito de trazer as ideias, que recorrentemente aparecem nos
delírios psicóticos, nessa situação descrita acima, apresenta casos em que,
diante do surto, frente ao apelo sexual, pode aparecer a questão da
imortalidade. E não só isso. O sujeito ainda se vê como um ser especial, único
e último no planeta, responsável pela raça humana. Essas ideias vão se formando
como delírios para dar conta de algum tipo de identidade para o sujeito.
Segundo ele, “A ausência da função simbólica da paternidade é a razão porque os
delírios de renascimento, criação e filiação são tão comuns na psicose” (p.
125), e ainda, “como tantas vezes constatamos na psicose, a ideia não integrada
de uma origem é reconstruída e reelaborada no delírio“.(LEADER, 2013, p. 125)
E
assim como os inícios são complicados, os fins também. No lugar em que a
mortalidade não pode ser simbolizada, aparece o delírio. A morte faz parte dos
temas universais humanos, que são simbolizados e transmitidos coletivamente.
Temos mitos e lendas que os retratam. Religiões que estabelecem enquadres
possíveis diante desse fenômeno tão tocante como a morte. E como na psicose, a
estrutura simbólica que daria conta disso, não está presente, uma coisa entra
no lugar, o delírio.
Seguindo
para o final do capítulo, Leader (2013) apresenta uma série de casos que
exemplificam formas de desencadeamento do surto, que não se enquadram no
encontro com a figura de autoridade simbólica, ou o terceiro, mas com uma
situação em que a solução criada para manter a vida no lugar, esbarra num
obstáculo, tal qual a confusão da significação. Os mecanismos de estabilização
e compensação, que foram utilizados por anos, décadas, são subitamente
questionados. Em muitos casos, como parte da construção delirante, é necessário
seguir pela via da diminuição da libido em si mesmo, ou no Outro, justamente
porque o simbólico não fez essa função de subtração de libido. A ideia, no
psicótico, é de que a retirada de algo aplaca a perseguição. Porém, o que
poderia ser colocado num plano metafórico, vai para o plano literal.
A
teoria que resumimos presume que habitamos um mundo de significação e que os
acontecimentos e as mudanças de nossa vida são mediados por processos
simbólicos. Devemos estar aptos a simbolizar as coisas que nos acontecem, os
novos papéis que nos descobrimos ocupando, as novas posições que podemos ser
chamados a assumir e a proximidade do Outro que às vezes a vida envolve. Quando
o apelo à estrutura simbólica fracassa – pelas razões que estivemos examinando
–, pode haver o desencadeamento de um surto psicótico. Abre-se um buraco no
nível do mundo imaginário do sujeito. Há um sentimento profundo de mudança. E
em seguida, na maioria dos casos, há um esforço de encontrar algum tipo de
solução, uma compensação, através da construção do delírio ou de qualquer
atividade que prometa proporcionar uma base no ponto em que o simbólico falha.
Isso pode envolver um projeto de pesquisa, uma nova profissão, uma atividade
artística ou uma busca das origens, ou da verdade histórica. (LEADER, 2013, p.
129)
Uma
pergunta que surge é em relação aos significantes que vão fazer a composição
das ideias delirantes. Leader (2013), tanto nesse capítulo quanto nos
anteriores, faz grande esforço de mostrar, através dos casos clínicos, que não
são elementos aleatórios que compõem a tentativa de restauro da realidade e da
vida do sujeito psicótico. Pelo contrário, são situações vividas, frases ditas
e contraditas, relações distorcidas com figuras parentais, formas de abuso
físico ou psicológico, que de alguma forma, criam o material de onde o sujeito
psicótico vai tirar as ideias que farão parte do novo momento delirante. E, não
podemos deixar de lado, o que Lacan chamou de ‘inconsciente a céu aberto’[4],
em que o sujeito psicótico parece captar o que o outro pensa, o que está acontecendo
no mundo externo, muitas vezes antecipando situações. Por isso, essa impressão
de clarividência que acomete alguns sujeitos nesse momento de entrada no surto,
e depois, é tão recorrente. Nem sempre o que pode ser considerado um delírio,
não tem um significado verdadeiro, não apenas para o sujeito, mas também para o
coletivo.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
LEADER, Darian. O que é loucura. Delírio e Sanidade na vida cotidiana. 1ª ed. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013.
[1] Essa frase de Susan Sontag levanta a mesma questão que Darian Leader propõe no livro de referência para esta resenha. Ela ainda é bastante interessante, se pensarmos que todas as nossas formas de significar a realidade, por mais que sejam compartilhadas, são produções de linguagem, algo da ordem de uma invenção para saber em que posição estamos. E ainda, se considerarmos os sintomas atuais, os limites entre sanidade e loucura estão borrados e se torna cada vez mais delicado estabelecer uma certeza sobre essas posições.
[2] Efeito dominó é uma expressão que geralmente é usada como metáfora para uma situação que se inicia, e não há meio de pará-la antes de chegar ao final. As pedras do jogo de domino são paralelepípedos que, se apoiados em uma superfície, ficam estáveis. Porém, se algo encosta nelas, tendem a cair, empurrando as demais, caso estejam uma ao lado da outra. Inevitavelmente, uma derruba a outra até que todas estejam caídas, no mesmo lugar em que antes se apoiavam. Há artistas que fazem desenhos com os paralelepípedos enfileirados, revelando uma nova imagem no final da sequência da queda das peças. Temos algo semelhante na psicose: na sequência do surto, os elementos que sustentavam uma estabilização vão caindo, e empurrando os outros, até chegar ao final do surto. Nisso, uma nova imagem se formará.
[3] A versão do livro utilizada nesta resenha é eletrônica, podendo variar a numeração das páginas.
[4] O aforismo ‘inconsciente a céu aberto’, de Lacan, pode ser encontrado entre os anos de 1955 e 1966. Surge na aula do dia 14 de dezembro de 1955 do Seminário 3 ([1955-1956] 2002, pp. 73-85), até a aula de 20 de abril de 1966 em seu Seminário 13 ([1965-1966] n.d., pp. 233-247), passando por outros seminários neste intervalo, além de dois textos dos Escritos.
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