Neste resumo, apresentarei o tema da repetição, que é um dos conceitos fundamentais da psicanálise. Esse assunto se faz muito importante diante do campo de estudos das toxicomanias, onde, grosso modo, vemos a repetição tanto nos modos de gozo do sujeito, através do uso de substâncias, por exemplo, como também nas declaradas recaídas diante das tentativas (frustradas) de abandono da dependência.
Do módulo de ambientação, do curso de especialização em Toxicomanias e Atenção Psicossocial, optei pela aula do professor Richard Simanke sobre a repetição. Ela foi baseada em seu livro, de título Repetição, publicado em março de 2024, pela editora Sinthoma. O vídeo é dividido em quatro partes, sendo a primeira uma introdução sobre o tema; a segunda, com o foco nos conceitos de Freud; a terceira, em Lacan, tanto no que se aproxima do conceito freudiano, quanto no que se diferencia; e no quarto vídeo, ele apresenta brevemente a repetição em outros campos de saber, especialmente a filosofia, articulando e concluindo com os conceitos psicanalíticos.
A repetição é tanto um fenômeno quanto um conceito metapsicológico. Para a psicanálise é considerada fundamental, pois é vista em manifestações clínicas, situações analíticas, fenômenos psicopatológicos, ou seja, na vida humana como um todo. Fazemos as coisas do mesmo jeito, repetimos os mesmos erros, vemos os outros fazerem as coisas repetidamente, e ainda assim, somos incapazes de aprender com os nossos próprios erros, e, como uma espécie de destino, erramos novamente. No âmbito cognitivo-comportamental, a zona de conforto é uma espécie de repetição, pois ter a previsibilidade produz apaziguamento, mesmo que isso empobreça a vida.
Desde a filosofia clássica temos a questão do repetir. Platão apresenta o conceito de rememoração. Para ele, a alma teria uma memória da experiência vivida. Mas o sujeito encarnado, a cada vivência, experimentaria isso como novo, surpreendente. Porém, é novo apenas para o sujeito finito, encarnado, limitado, que não consegue agir de maneira totalmente racional. Na filosofia moderna, Nietzsche também apresenta a repetição através do conceito do eterno retorno, em que nada é absolutamente novo. Neste caso, ele traz essa questão como uma questão moral e com uma pergunta de fundo: a vida que levamos é aquilo que poderíamos fazer para sempre?
Freud primeiro apresenta o funcionamento da repetição e depois o conceitua através da compulsão à repetição. A repetição seria da situação traumática, uma espécie de revivência do trauma: o que foi excluído da vida mental consciente do sujeito, retorna como sintoma, um esforço de defesa ao traumático.
Seguindo o desenvolvimento da sua teoria, Freud trabalha sobre o conceito de pulsão e a necessidade de conservação, preservação do mesmo. Articula assim a regressão associada à repetição, pois o sujeito teria a intenção de retornar ao passado para manter as coisas da mesma forma. Ele aponta a fixação também relacionada a isso. Segundo o professor Simanke, no seu desenvolvimento, o sujeito vai deixando lastro das passagens que faz, e quando encontra um obstáculo, tende a voltar ao ‘tempo bom’.
No texto Recordar, Repetir e Elaborar, de 1914, Freud apresenta a compulsão à repetição como um conceito clínico, em que o sujeito repetiria para não recordar. Aqui, Freud ainda acrescenta um viés da transferência analítica, que não estaria mais como o motor da análise, no sentido da recordação, mas serviria como um modo do sujeito repetir o vivido com o analista, que seria envolvido nos seus sintomas, colocando assim, a transferência como um obstáculo à análise. É com o cessar da repetição que o sujeito pode recordar, e com isso, a análise prosseguir.
A compulsão à repetição não se apresenta só na análise, mas em toda vida do sujeito. E por isso, Freud fala em neurose de destino. O sujeito não sofre pelo que lhe acontece, mas ele sofre pelo que faz a si mesmo, pelas escolhas que faz. O que muitos hoje chamam de autossabotagem, para que as coisas não deem certo na vida. Isso, de certa forma, é a própria neurose. A partir daí, Freud nota que a repetição é independente da análise e dá um outro tom à compulsão à repetição, no texto Além do Princípio do Prazer, de 1920. Agora ele trata o tema não mais no sentido clínico, mas como um conceito metapsicológico, um fundamento teórico da psicanálise. A compulsão à repetição é o próprio além (e aquém) do princípio do prazer, ou seja, o sujeito não repete porque estaria em busca do prazer, como Freud pensava no princípio, aliás, o princípio do prazer é irrelevante para a repetição. O que a pulsão quer é repetir. Freud revisita então todos os conceitos anteriormente elaborados por ele, a partir desse novo paradigma. Na infância, brincadeiras, histórias, jogos, tudo é repetitivo. Na vida adulta, idem. Repetir é a expressão mais pura da pulsão. Freud chega então num novo viés para a conservação, que antes ele via como um modo de autoconservação, para que algo continuasse a existir. Agora, ele vê a conservação como uma busca para que algo volte ao estado anterior, em que não haviam estímulos. Algo retrógrado, voltando aos próprios passos. É aqui que aparece a pulsão de morte, com seu caráter de retorno ao estado anterior. A meta da vida é retornar ao estado inanimado.
Lacan, com o texto Complexos Familiares, publicado em 1938, inicia uma certa cronologia do desenvolvimento da repetição em sua obra. Nesse momento, ele não pensa na repetição como uma noção intrapsíquica, como em Freud, pois ainda considera a noção de complexo vinda de uma dupla via, uma psicanalítica, da teorização feita por Jung (através de quem ele chegará a Freud), e outra, da psiquiatria, da escola de Zurich, com Bleuler, pensando nas questões da psicose e das doenças mentais. O complexo não teria apenas o status psíquico, mas também sociológico, na relação entre os membros da família. Seu pensamento nesse período estava bastante alicerçado em Durkheim, o pai da sociologia francesa. O complexo, para o Lacan desse período, vem no desenvolvimento do sujeito humano, que passa pela maturação biológica, depois a maturação sociológica, através da família, e pela maturação mental.
Lacan descreve três complexos fundamentais. O primeiro é o complexo do Desmame, desmame materno, biológico. Diante disso, como fica a situação da criança com outros membros da família, num aspecto sociológico? E, também o aspecto psicológico, como a criança vivencia isso, o que fica como herança para o sujeito em formação, no desenvolvimento psíquico? Lacan chamará isso de imago, que seria uma estrutura imaginária que configura a experiência subjetiva. Imago não como uma entidade mental, mas como forma de organizar a experiência. Do complexo do desmame se produz a imago do seio.
Outro complexo fundamental é o complexo de Intrusão, que vemos com o nascimento de um irmão, por exemplo. Isso organiza o sujeito. Para Lacan, o complexo de intrusão é o mais importante, é um complexo nuclear. Ele está relacionado ao complexo do espelho. É com esse conceito que Lacan repensa algumas noções freudianas como o narcisismo, a questão da identificação, a teoria do imaginário, e a experiência da psicologia comparada: o sujeito não é um outro no espelho, mas um reflexo do seu próprio corpo. O que fica para o sujeito é a imago do outro. O sujeito se relaciona com outros como semelhantes. É dentro desse complexo que temos a rivalidade fraterna, que é fundamental. O ciúme fraterno é o protótipo para todas as relações sociais.
O terceiro complexo é o complexo de Édipo, formação mais tardia, posterior ao complexo de intrusão. Não é um fato biológico, considerando a diferença sexual, mas introduz a imago do pai, a figura do outro como diferente, não como semelhante como no complexo anterior.
Toda essa teorização inicial é uma forma de pensar a repetição para Lacan, pois os complexos não são episódios do desenvolvimento, que não deixam restos nesse processo. Os complexos fazem parte de uma estrutura do sujeito que se dá, e vai ser reativada em circunstâncias da sua vida futura. Cada um desses processos constitui uma estrutura reativa que faz com que esse sujeito reaja às situações externas de determinada maneira.
Posteriormente, Lacan vai formular e reformular o conceito de repetição em dois principais momentos. Primeiro, através do seminário sobre A Carta Roubada, de 1955, em que Lacan reescreve o que Freud teorizou sobre a compulsão à repetição, sob os termos do estruturalismo linguístico. Lacan pretendia afastar Freud dos elementos biológicos e psicológicos e introduzi-lo na linguística e na antropologia social. Ele nomeia como automatismo de repetição a forma como se estrutura a combinatória da linguagem. Antes da palavra significar alguma coisa, ela se relaciona com outras palavras. Entendemos suas propriedades a partir da sua relação com outros signos. Ele chama esse sistema de estrutura.
As coisas se repetem porque o sujeito tem um número de combinações possíveis dentro da estrutura de linguagem para reagir. Não que elas se repetem sempre iguais, mas é uma espécie de rearranjo dos mesmos termos, um conjunto de elementos de um mesmo sistema de combinação. A estrutura é um sistema fechado, portanto existe um número finito de elementos dentro desse conjunto, que concorrem continuamente. Uma espécie de maquinação do significante, um mecanismo formal. O fenômeno que se apresenta como repetição é uma combinação dessa maquinaria de significantes, um conjunto de rearranjo dessa estrutura, da qual o sujeito não consegue escapar. Com todo esse trabalho, Lacan formaliza a instância do simbólico.
E o segundo momento de trabalho do conceito de repetição é no Seminário 11, Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, de 1973, que Lacan vai ter o real como plano de trabalho. A repetição é um dos quatro conceitos fundamentais, ao lado do inconsciente, da pulsão e da transferência. Aqui, Lacan recorre às noções aristotélicas de automaton (aquilo que se move por si mesmo) e tiquê (quando se intenta atingir um objetivo, mas se atinge outro, por acaso, imprevisto). Essas concepções são uma forma de metáfora para tratar da repetição. Ele se interessa pelo automaton, como o automatismo que se referia à compulsão à repetição. O automaton aristotélico tem a ver com a repetição simbólica, que Lacan já tinha adiantado na Carta Roubada.
Mas tem a outra dimensão, a da tiquê, da fortuna, aquilo que escaparia à compulsão à repetição. Uma espécie de real, que é traumático e vai exigir um trabalho do simbólico, que é incompleto. Real esse que escapa à capacidade de simbolização. O sujeito vai encontrar com uma certa dimensão da vida, que ele não consegue antecipar. Assim, ele se depara com esse imprevisível do mundo que não foi construído simbólica-imaginariamente. Para além daquilo que é o mundo para o sujeito, há algo que ainda existe, colocando em ato algo novo para ele. É traumático porque não está simbolizado, oferecendo a emergência do novo. E, ao mesmo tempo, indica a insistência do sujeito em incluir no seu mundo aquilo que escapa. A repetição em que o real está incluído não é aquele mesmo arranjo onde o mesmo se repete sem cessar, mas é o esforço do sujeito em colocar isso no mundo. Porém, é uma tentativa fracassada, porque o real permanecerá real.
As reflexões tanto de Freud, como de Lacan, pensam a vida extremamente pessimista, afinal, nada de novo acontece ou pode acontecer. Estamos presos à repetição.
O professor Simanke elege o filósofo Francis Bacon para trazer um aspecto fora do campo psicanalítico no sentido da repetição. Bacon fala sobre catástrofes naturais e humanas e atribui ao esquecimento um papel importante nesse sentido. Ele fala do caráter lacunar da memória. O autor faz referências tanto ao Eclesiastes, quanto a Platão. Como vimos anteriormente, Platão fala da memória da alma, que não seria disponível ao ser encarnado. E Salomão, no livro bíblico, diz que toda novidade é esquecimento. Se não tivéssemos perdido memória com as catástrofes (registros humanos que são destruídos pelas forças da natureza ou pelas ações dos homens), não teríamos a impressão de viver algo novo, porque a vida e a história são só repetição. Com esses elementos, Bacon articula a repetição, a recordação e o novo. Seu olhar não carrega pessimismo.
Tanto Freud, como Lacan, vão procurar antídotos para essa condição, para esse pessimismo. Freud aposta na dessexualização da pulsão, na possibilidade criativa de Eros, que aglutina as coisas e vai dar outro destino à pulsão de morte, funcionando na complexidade e criação e não na regressão e dissolução. Apesar disso, a pulsão de morte continua. Eros seria então um paliativo mais do que um antídoto. Lacan aposta no potencial criativo do encontro do sujeito com o real. Mesmo traumático, patológico, ele é a única possibilidade do novo na vida humana. Freud então se coloca como um pensador clássico, apostando na rememoração. O objetivo da análise é fazer o sujeito rememorar para parar de repetir, mas isso é impossível. Já Lacan é um pensador moderno, afirmando que a verdade do sujeito está na repetição.
A aula é bastante completa, assim como o livro, e me faltou espaço para associar outras referencias nesse resumo. Essa articulação ficará para um próximo trabalho.