domingo, 22 de dezembro de 2024

A REPETIÇÃO


Neste resumo, apresentarei o tema da repetição, que é um dos conceitos fundamentais da psicanálise. Esse assunto se faz muito importante diante do campo de estudos das toxicomanias, onde, grosso modo, vemos a repetição tanto nos modos de gozo do sujeito, através do uso de substâncias, por exemplo, como também nas declaradas recaídas diante das tentativas (frustradas) de abandono da dependência.

Do módulo de ambientação, do curso de especialização em Toxicomanias e Atenção Psicossocial, optei pela aula do professor Richard Simanke sobre a repetição. Ela foi baseada em seu livro, de título Repetição, publicado em março de 2024, pela editora Sinthoma. O vídeo é dividido em quatro partes, sendo a primeira uma introdução sobre o tema; a segunda, com o foco nos conceitos de Freud; a terceira, em Lacan, tanto no que se aproxima do conceito freudiano, quanto no que se diferencia; e no quarto vídeo, ele apresenta brevemente a repetição em outros campos de saber, especialmente a filosofia, articulando e concluindo com os conceitos psicanalíticos.

A repetição é tanto um fenômeno quanto um conceito metapsicológico. Para a psicanálise é considerada fundamental, pois é vista em manifestações clínicas, situações analíticas, fenômenos psicopatológicos, ou seja, na vida humana como um todo. Fazemos as coisas do mesmo jeito, repetimos os mesmos erros, vemos os outros fazerem as coisas repetidamente, e ainda assim, somos incapazes de aprender com os nossos próprios erros, e, como uma espécie de destino, erramos novamente. No âmbito cognitivo-comportamental, a zona de conforto é uma espécie de repetição, pois ter a previsibilidade produz apaziguamento, mesmo que isso empobreça a vida.

Desde a filosofia clássica temos a questão do repetir. Platão apresenta o conceito de rememoração. Para ele, a alma teria uma memória da experiência vivida. Mas o sujeito encarnado, a cada vivência, experimentaria isso como novo, surpreendente. Porém, é novo apenas para o sujeito finito, encarnado, limitado, que não consegue agir de maneira totalmente racional. Na filosofia moderna, Nietzsche também apresenta a repetição através do conceito do eterno retorno, em que nada é absolutamente novo. Neste caso, ele traz essa questão como uma questão moral e com uma pergunta de fundo: a vida que levamos é aquilo que poderíamos fazer para sempre?

Freud primeiro apresenta o funcionamento da repetição e depois o conceitua através da compulsão à repetição. A repetição seria da situação traumática, uma espécie de revivência do trauma: o que foi excluído da vida mental consciente do sujeito, retorna como sintoma, um esforço de defesa ao traumático.

Seguindo o desenvolvimento da sua teoria, Freud trabalha sobre o conceito de pulsão e a necessidade de conservação, preservação do mesmo. Articula assim a regressão associada à repetição, pois o sujeito teria a intenção de retornar ao passado para manter as coisas da mesma forma. Ele aponta a fixação também relacionada a isso. Segundo o professor Simanke, no seu desenvolvimento, o sujeito vai deixando lastro das passagens que faz, e quando encontra um obstáculo, tende a voltar ao ‘tempo bom’.

No texto Recordar, Repetir e Elaborar, de 1914, Freud apresenta a compulsão à repetição como um conceito clínico, em que o sujeito repetiria para não recordar. Aqui, Freud ainda acrescenta um viés da transferência analítica, que não estaria mais como o motor da análise, no sentido da recordação, mas serviria como um modo do sujeito repetir o vivido com o analista, que seria envolvido nos seus sintomas, colocando assim, a transferência como um obstáculo à análise. É com o cessar da repetição que o sujeito pode recordar, e com isso, a análise prosseguir.

 A compulsão à repetição não se apresenta só na análise, mas em toda vida do sujeito. E por isso, Freud fala em neurose de destino. O sujeito não sofre pelo que lhe acontece, mas ele sofre pelo que faz a si mesmo, pelas escolhas que faz. O que muitos hoje chamam de autossabotagem, para que as coisas não deem certo na vida. Isso, de certa forma, é a própria neurose. A partir daí, Freud nota que a repetição é independente da análise e dá um outro tom à compulsão à repetição, no texto Além do Princípio do Prazer, de 1920. Agora ele trata o tema não mais no sentido clínico, mas como um conceito metapsicológico, um fundamento teórico da psicanálise. A compulsão à repetição é o próprio além (e aquém) do princípio do prazer, ou seja, o sujeito não repete porque estaria em busca do prazer, como Freud pensava no princípio, aliás, o princípio do prazer é irrelevante para a repetição. O que a pulsão quer é repetir. Freud revisita então todos os conceitos anteriormente elaborados por ele, a partir desse novo paradigma. Na infância, brincadeiras, histórias, jogos, tudo é repetitivo. Na vida adulta, idem. Repetir é a expressão mais pura da pulsão. Freud chega então num novo viés para a conservação, que antes ele via como um modo de autoconservação, para que algo continuasse a existir. Agora, ele vê a conservação como uma busca para que algo volte ao estado anterior, em que não haviam estímulos. Algo retrógrado, voltando aos próprios passos. É aqui que aparece a pulsão de morte, com seu caráter de retorno ao estado anterior. A meta da vida é retornar ao estado inanimado.   

  Lacan, com o texto Complexos Familiares, publicado em 1938, inicia uma certa cronologia do desenvolvimento da repetição em sua obra. Nesse momento, ele não pensa na repetição como uma noção intrapsíquica, como em Freud, pois ainda considera a noção de complexo vinda de uma dupla via, uma psicanalítica, da teorização feita por Jung (através de quem ele chegará a Freud), e outra, da psiquiatria, da escola de Zurich, com Bleuler, pensando nas questões da psicose e das doenças mentais. O complexo não teria apenas o status psíquico, mas também sociológico, na relação entre os membros da família. Seu pensamento nesse período estava bastante alicerçado em Durkheim, o pai da sociologia francesa. O complexo, para o Lacan desse período, vem no desenvolvimento do sujeito humano, que passa pela maturação biológica, depois a maturação sociológica, através da família, e pela maturação mental.

Lacan descreve três complexos fundamentais. O primeiro é o complexo do Desmame, desmame materno, biológico. Diante disso, como fica a situação da criança com outros membros da família, num aspecto sociológico? E, também o aspecto psicológico, como a criança vivencia isso, o que fica como herança para o sujeito em formação, no desenvolvimento psíquico? Lacan chamará isso de imago, que seria uma estrutura imaginária que configura a experiência subjetiva. Imago não como uma entidade mental, mas como forma de organizar a experiência. Do complexo do desmame se produz a imago do seio.

Outro complexo fundamental é o complexo de Intrusão, que vemos com o nascimento de um irmão, por exemplo. Isso organiza o sujeito. Para Lacan, o complexo de intrusão é o mais importante, é um complexo nuclear. Ele está relacionado ao complexo do espelho. É com esse conceito que Lacan repensa algumas noções freudianas como o narcisismo, a questão da identificação, a teoria do imaginário, e a experiência da psicologia comparada: o sujeito não é um outro no espelho, mas um reflexo do seu próprio corpo. O que fica para o sujeito é a imago do outro. O sujeito se relaciona com outros como semelhantes. É dentro desse complexo que temos a rivalidade fraterna, que é fundamental. O ciúme fraterno é o protótipo para todas as relações sociais.

O terceiro complexo é o complexo de Édipo, formação mais tardia, posterior ao complexo de intrusão. Não é um fato biológico, considerando a diferença sexual, mas introduz a imago do pai, a figura do outro como diferente, não como semelhante como no complexo anterior. 

Toda essa teorização inicial é uma forma de pensar a repetição para Lacan, pois os complexos não são episódios do desenvolvimento, que não deixam restos nesse processo. Os complexos fazem parte de uma estrutura do sujeito que se dá, e vai ser reativada em circunstâncias da sua vida futura. Cada um desses processos constitui uma estrutura reativa que faz com que esse sujeito reaja às situações externas de determinada maneira. 

Posteriormente, Lacan vai formular e reformular o conceito de repetição em dois principais momentos. Primeiro, através do seminário sobre A Carta Roubada, de 1955, em que Lacan reescreve o que Freud teorizou sobre a compulsão à repetição, sob os termos do estruturalismo linguístico. Lacan pretendia afastar Freud dos elementos biológicos e psicológicos e introduzi-lo na linguística e na antropologia social. Ele nomeia como automatismo de repetição a forma como se estrutura a combinatória da linguagem. Antes da palavra significar alguma coisa, ela se relaciona com outras palavras. Entendemos suas propriedades a partir da sua relação com outros signos. Ele chama esse sistema de estrutura.

As coisas se repetem porque o sujeito tem um número de combinações possíveis dentro da estrutura de linguagem para reagir. Não que elas se repetem sempre iguais, mas é uma espécie de rearranjo dos mesmos termos, um conjunto de elementos de um mesmo sistema de combinação. A estrutura é um sistema fechado, portanto existe um número finito de elementos dentro desse conjunto, que concorrem continuamente. Uma espécie de maquinação do significante, um mecanismo formal. O fenômeno que se apresenta como repetição é uma combinação dessa maquinaria de significantes, um conjunto de rearranjo dessa estrutura, da qual o sujeito não consegue escapar.  Com todo esse trabalho, Lacan formaliza a instância do simbólico.

E o segundo momento de trabalho do conceito de repetição é no Seminário 11, Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, de 1973, que Lacan vai ter o real como plano de trabalho. A repetição é um dos quatro conceitos fundamentais, ao lado do inconsciente, da pulsão e da transferência. Aqui, Lacan recorre às noções aristotélicas de automaton (aquilo que se move por si mesmo) e tiquê (quando se intenta atingir um objetivo, mas se atinge outro, por acaso, imprevisto). Essas concepções são uma forma de metáfora para tratar da repetição. Ele se interessa pelo automaton, como o automatismo que se referia à compulsão à repetição. O automaton aristotélico tem a ver com a repetição simbólica, que Lacan já tinha adiantado na Carta Roubada.

Mas tem a outra dimensão, a da tiquê, da fortuna, aquilo que escaparia à compulsão à repetição. Uma espécie de real, que é traumático e vai exigir um trabalho do simbólico, que é incompleto. Real esse que escapa à capacidade de simbolização. O sujeito vai encontrar com uma certa dimensão da vida, que ele não consegue antecipar. Assim, ele se depara com esse imprevisível do mundo que não foi construído simbólica-imaginariamente. Para além daquilo que é o mundo para o sujeito, há algo que ainda existe, colocando em ato algo novo para ele. É traumático porque não está simbolizado, oferecendo a emergência do novo. E, ao mesmo tempo, indica a insistência do sujeito em incluir no seu mundo aquilo que escapa.  A repetição em que o real está incluído não é aquele mesmo arranjo onde o mesmo se repete sem cessar, mas é o esforço do sujeito em colocar isso no mundo. Porém, é uma tentativa fracassada, porque o real permanecerá real. 

As reflexões tanto de Freud, como de Lacan, pensam a vida extremamente pessimista, afinal, nada de novo acontece ou pode acontecer. Estamos presos à repetição. 

O professor Simanke elege o filósofo Francis Bacon para trazer um aspecto fora do campo psicanalítico no sentido da repetição. Bacon fala sobre catástrofes naturais e humanas e atribui ao esquecimento um papel importante nesse sentido. Ele fala do caráter lacunar da memória. O autor faz referências tanto ao Eclesiastes, quanto a Platão. Como vimos anteriormente, Platão fala da memória da alma, que não seria disponível ao ser encarnado. E Salomão, no livro bíblico, diz que toda novidade é esquecimento. Se não tivéssemos perdido memória com as catástrofes (registros humanos que são destruídos pelas forças da natureza ou pelas ações dos homens), não teríamos a impressão de viver algo novo, porque a vida e a história são só repetição. Com esses elementos, Bacon articula a repetição, a recordação e o novo. Seu olhar não carrega pessimismo.

Tanto Freud, como Lacan, vão procurar antídotos para essa condição, para esse pessimismo. Freud aposta na dessexualização da pulsão, na possibilidade criativa de Eros, que aglutina as coisas e vai dar outro destino à pulsão de morte, funcionando na complexidade e criação e não na regressão e dissolução. Apesar disso, a pulsão de morte continua. Eros seria então um paliativo mais do que um antídoto. Lacan aposta no potencial criativo do encontro do sujeito com o real. Mesmo traumático, patológico, ele é a única possibilidade do novo na vida humana. Freud então se coloca como um pensador clássico, apostando na rememoração. O objetivo da análise é fazer o sujeito rememorar para parar de repetir, mas isso é impossível. Já Lacan é um pensador moderno, afirmando que a verdade do sujeito está na repetição.

A aula é bastante completa, assim como o livro, e me faltou espaço para associar outras referencias nesse resumo. Essa articulação ficará para um próximo trabalho.


OBESIDADE INFANTIL PARA ALÉM DA COMIDA

 “A infância é chão sob o qual pisamos a vida inteira.”

Lya Luft

Nesta resenha pretendo comentar o artigo “‘A gente não quer só comida’: integralidade na atuação interprofissional no cuidado da obesidade infantil”, da autora Cláudia Carneiro da Cunha, publicado no número especial da revista Saúde em Destaque, de 05 de dezembro de 2022. Este texto foi escolhido em função da conclusão do módulo V, sobre Transtornos Alimentares na Infância, com aulas da psicanalista Paula Félix e das médicas Dra. Marina Mercuri (pediatra) e Dra. Georgette de Paula (endocrinologista infantil). 

O artigo de Cunha (2022) traz uma análise socioantropológica de uma prática de assistência de caráter interprofissional, da psicologia e da nutrição, voltada ao atendimento de crianças e adolescentes obesos e seus familiares, quase sempre mães, acompanhados em ambulatório público da Universidade do Rio de Janeiro (UERJ). O trabalho consistia em articular a educação em saúde e a integralidade de cuidados, com o brincar como instrumento terapêutico, e a arte como campo de vivências da singularidade. O corpo e a corporeidade, nesse processo, são tomados pela sua dimensão biopolítica e pelo viés sensível e simbólico. Aqui temos um bom exemplo de trabalho conjunto, tanto no âmbito de profissionais das áreas envolvidas no tratamento, quanto de crianças / adolescentes e seus responsáveis, apontando a importância do grupo quando temos diante de nós um tratamento complexo. 

A obesidade é considerada uma doença multifatorial, caracterizada pelo acúmulo de tecido adiposo no corpo. Há indicativos de correlações entre ansiedade, depressão, questões familiares e obesidade infantil. Na atualidade, essa questão tomou uma proporção maior, tanto no aumento significativo de casos, como na mudança do discurso da mídia e das redes sociais, que aponta as diferentes formas corporais, especialmente aquelas que apresentam um aspecto mais volumoso, como preocupante e ‘pouco saudável’, gerando uma condição de exceção.  

 “Onde está o menino que fui, segue dentro de mim ou se foi?”

Pablo Neruda

O projeto-piloto, que nasceu com o nome ‘1,2, feijão com arroz: tecendo práticas da nutrição e da psicologia na alimentação infanto-juvenil’, incluía atividades em grupo, individuais e oficinas temáticas. Além da proposição de métodos específicos para cada área – a psicologia propôs o brincar como instrumento terapêutico -, o grupo interdisciplinar também levantou questões e avaliou de forma conjunta resultados e entraves. Foram debatidas as configurações de família na contemporaneidade e o reflexo disso na educação das crianças. As questões do comer, a tecnologia e os meios de comunicação, o entretenimento de crianças e jovens na atualidade, o retraimento do brincar, especialmente em espaços públicos (em função da violência urbana), tudo isso foi pauta. O grupo também abordou o tema da comida para fora do núcleo familiar, explorando as formas de produção e distribuição de alimentos.

No projeto, com uma pesquisa etnográfica de suporte socioantropológico, as crianças foram convidadas a brincar livremente, as mães participaram de rodas de conversas, e houve uma atividade conjunta voltada à educação alimentar. Os pesquisadores constataram os fenômenos e os interpretaram, mas também fizeram parte ativa do grupo, evitando criar uma lógica normativa e verticalizada. A observação-participante é um recurso-chave nesse tipo de pesquisa, pois se considera que muitos elementos não podem ser apreendidos por meio da fala ou da escrita. O ambiente, comportamentos individuais e grupais, linguagem não verbal, sequência e temporalidade, tudo isso é fundamental como subsídio para a interpretação dos dados e a captação do excedente de sentido, que causa afetações no campo investigado.

 “O que a memória ama, fica eterno.”

Adélia Prado

Como abordagem do primeiro eixo temático de trabalho, ‘relações familiares e o lugar da criança na família’, Cunha utilizou a ferramenta Familiograma, instrumento que permite descrever, e ver, como a família funciona e interage. O objetivo era obter uma representação gráfica com uma idéia da composição das famílias, dos tipos de arranjos e vínculos, e das pistas sobre as influências dessa composição na obesidade infantil. Foi observado que, em muitas famílias, havia várias figuras de autoridade, mas nenhuma, ou poucas que assumiam a condução do tratamento da criança ou adolescente. A proposta de atividade foi de uma colagem, com figuras de pessoas e bichos, recortadas de revistas, além de tinta guache e canetinha para composição de desenhos em papel. Essa dinâmica foi feita com as crianças e as mães separadamente. 

“As crianças não brincam de brincar, elas brincam de verdade.”

Mário Quintana

No segundo eixo, ‘corpo sensível e imagem corporal’, os profissionais visavam proporcionar às crianças e adolescentes uma experiência de ‘renascimento sensível’, dando espaço para um conjunto de sensações mobilizadoras de marcas corporais inconscientes, a fim de acessar sentimentos e emoções em uma rememoração do corpo pelo corpo. A hipótese de trabalho, nesse caso, era de que a interrupção do cuidado, ou sua descontinuidade nos primeiros anos de vida, geram efeitos específicos no psicossoma. [1] 

Com base nisso, a interrogação de Cunha seguiu para investigar se essas marcas, na mais tenra idade, podem estar relacionadas com a obesidade. Cunha baseou sua pesquisa tanto no método Angel Vianna, que visa um corpo mais livre para que ele possa descobrir seu jeito de fazer movimentos, e também na abordagem da Psicanálise do Sensível, de Ivanise Fontes.  A autora considerou que diante de vivências de descontinuidade no cuidado na relação mãe-cuidador/ bebê, o sujeito desamparado busca conforto psíquico no ato de comer, na produção de um corpo farto, redondo, aconchegante, na busca por um preenchimento, um ‘autoamparo’, com a gordura operando como uma espécie de ‘prótese psíquica’.

As crianças e adolescentes participaram da vivência de ‘renascimento’, através da entrada e saída de uma caixa de papelão de grande dimensão, que as englobasse, proporcionando contorno e proteção. Do lado de fora Cunha e as estagiárias, além das demais crianças, aguardavam o tempo de nascimento de cada um, interagindo com singelos toques na caixa, simulando sons, movimentos do mundo externo, capazes de afetar a vida intrauterina. Quando a criança resolvia nascer, era acolhida por todos com manta macia, deitada de bruços, recebendo acolhimento. Cunha (2022) recorre ao conceito de Eu-pele, de Didieur Anzieu, em que esse autor afirma que a pele é a base orgânica que auxilia na fundamentação de funções específicas para as futuras organizações do Eu. Além disso, ela também recorre ao conceito de holding, de Winnicott, em que o próprio contato físico faria o bebê se sentir amparado e seguro. Em seguida do exercício, foi oferecido um pedaço de argila para que as crianças e adolescentes pudessem criar formas sobre o sentido/vivido. Não se tratava de criar uma representação, mas algo com o qual pudessem moldar, ancorar as sensações, possibilitando algum grau de elaboração e conforto.

Os efeitos da prática de ‘renascimento sensível’ foram percebidos numa vivência sensorial posterior, do terceiro eixo temático, ‘sentidos do olfato, do paladar e da alimentação’. Na roda de cheiros, as crianças, adolescentes e mães foram convidados à atividade olfativa com cheiros diversos, relativos às experiências cotidianas: café, achocolatado, chiclete, laranja, cravo, canela, cebola, alho, etc. Com isso, foram exercitando a rememoração e relacionando essas memórias com a família e a vida familiar. 

“As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças.”

Manoel de Barros

A partir disso, chegaram ao quarto eixo temático, ‘dinâmicas familiares e rotinas alimentares’. Novamente mães foram separadas das crianças e adolescentes. As primeiras foram conversar sobre o vivido e rememorado, já as crianças foram convidadas a criar esquetes com as memórias provocadas. Essa atividade foi inspirada no Teatro Fórum, do Centro do Teatro do Oprimido, que estimula a criação de cenas com situações de opressão, discordância e impasse, envolvendo desigualdade de poder entre dois indivíduos. Notou-se que os conflitos das cenas giraram sobre o tema da alimentação, mesmo sem essa ter sido a orientação. As crianças e adolescentes também utilizaram a caixa-útero, entre outros materiais e adereços disponíveis. Fizeram cenas, expressando situações domésticas com caráter agressivo acentuado. Depois, refizeram essas cenas, reformulando a postura dos personagens, mostrando mudança de posição subjetiva diante das relações de poder. 

Após essa etapa, aconteceram discussões sobre o trabalho e as cenas. O mais importante foi dar espaço para a expressividade e para a criatividade diante dos efeitos do conflito no corpo e na vida. A questão principal era dar passagem aos afetos, performar esses afetos relacionalmente. 

Durante as atividades, foi observado nas crianças e adolescentes uma espécie de ‘alienação’ [2]  de si mesmas com relação à imagem corporal e a propriocepção do corpo presente e vivo. As ações do projeto foram pensadas como propulsoras dessa consciência corporal, começando pela pele, pelo invólucro sensível e estruturante do corpo no mundo. A díade mãe-filho é entendida como um complexo funcionamento dessa ligação psicossomática, que em alguns momentos parece impedir que a criança se delineie na sua singularidade. 

“As fantasias de infância são as memórias transfiguradas pela saudade.”

Rubem Alves 

No artigo, Cunha (2022) apresenta o brincar como a base para o estabelecimento da relação mãe-filho, sendo instrumento para uma práxis corporal adequada: a formação da consciência corporal, o desenvolvimento sensório-motor, a construção espacial, a construção da consciência de si e da consciência social. O brincar é a linguagem preferencial da criança, um elemento de conexão cultural presente em todos os grupos sociais, um meio de criação de vínculos. As brincadeiras e os movimentos permitem falar de comida, alimentação e nutrição em diálogo com outros saberes, sem estabelecer hierarquias entre eles. No espaço do serviço de saúde construído pelo projeto, o riso solto, o corpo livre e a descontração assumem um lugar especial no tratamento de crianças/adolescentes e seus responsáveis, em contraposição à rigidez das práticas de saúde normativas. 

O trabalho resultou em melhora nos exames bioquímicos, diminuição de medidas antropométricas, autoaceitação, diminuição do sedentarismo, melhora no sono, no convívio social, nos níveis de ansiedade, agressividade, compulsão alimentar e relações familiares. A autora, conforme resultados, entende que programas de intervenção com esse perfil devem compor políticas publicas. 

As questões levantadas ao final do projeto são questões que deveriam ser feitas em todo caso de obesidade infantil, a começar pelo médico.

O que seria a melhora da criança? Comunicar-se melhor nas consultas e expressar seus desejos, dificuldades e insatisfações? Engajar-se ativamente no tratamento nutricional? Além dos ‘riscos’ orgânicos, presentes e possíveis com o tempo de convívio com o sobrepeso ou à obesidade, qual é o ‘problema’, qual é o problema de ser ‘gordo/a’ na infância e adolescência? Quais são os demais riscos dessa condição habitar um corpo infantil dissidente? (CUNHA, 2022. p. 291).

Como estamos num terreno infanto-juvenil, o aspecto lúdico dos Contos de Fadas pode entrar para complementar o processo de subjetivação que acontece nessa fase da vida humana. O conto ‘João e Maria”[3] , que, por excelência, é o conto que se refere às questões alimentares, foi muito bem trabalhado no campo psicanalítico por Bruno Bettelheim e Diana Corso, com a visada de apontar uma fase importante na vida das crianças, que se refere à ansiedade infantil diante da separação da mãe. 

O conto traz a história de uma família muito pobre. Os pais decidem deixar as crianças na floresta à sua própria sorte, para não terem mais duas bocas para alimentar. Na primeira tentativa, as crianças retornam para casa, não aceitando a separação. Na segunda, por trocarem as pedras por migalhas de pão como sinalização do caminho, não conseguem retornar. Elas encontram uma casa feita de doces e se fartam de comer. A dona da casa, uma bruxa, os convida para entrar e logo eles percebem que ela irá devorá-los. As crianças precisam de criatividade e astúcia para reverterem esse destino fatal. Conseguem enganar a bruxa, jogá-la dentro do forno e fugirem para casa com um tesouro que encontraram por lá.

O conto de fadas é a cartilha onde a criança aprende a ler sua mente na linguagem das imagens, a única linguagem que permite a compreensão antes de conseguirmos a maturidade intelectual. A criança precisa ser exposta a essa linguagem, e deve aprender a prestar atenção a ela, se deseja chegar a dominar sua alma.” (BETTELHEIM, 1980, p. 197).

 Bettelheim (1980) faz uma boa análise, de viés psicanalítico, em relação ao conto. Aponta a questão da ansiedade infantil da separação da mãe. Nesse processo, a mãe se torna egoísta e rejeita as solicitações orais vindas da criança. A criança, por sua vez, precisa usar de criatividade para sair da situação e reaver os pais. A estrutura do próprio conto indica a participação da criança no processo, uma vez que o sujeito, por mais jovem que seja, tem sua participação ativa na sua constituição. João e Maria já suspeitam que os pais querem se livrar deles. Na primeira ida à floresta, João já leva pedrinhas para guardar o caminho de volta. Mas na segunda, escolhe as migalhas, que são comidas pelos pássaros e os deixa sem retorno. São os tempos de simbolização, em que há criframento de linguagem nas experiências para futuros deciframentos. Um outro aspecto é sobre quais passagens são feitas pelos irmãos, conjuntamente, e quais devem ser feitas individualmente. O retorno para o lar, e para os pais, se dá com eles já em outra posição, agora tendo adquirido atributos com os quais vão fazer parte dessa família. Podemos pensar na passagem do ser (o amor da mamãe), para ter (algo que mamãe deseja), como um tempo edípico necessário como avanço desse sujeito no mundo.

Corso (2006) aponta as questões de desmame e independência, a curiosidade do bebê sobre o mundo além da mãe, o medo da morte, o reencontro do corpo da mãe na casa de guloseimas da bruxa, a necessidade de aceder à linguagem para sair da grata passividade para uma posição ativa, dentre tantos outros aspectos. 

Fazer o esforço de pedir com palavras (em vez de gritos), trabalhando no uso do vocabulário, assim como se abastecer do que necessitam (indo buscar os objetos com as próprias pernas) são atos vividos como abandono. Se a criança tiver de se engenhar para atingir um objetivo é porque não o fizeram por e para ela. Neste momento (às vezes pelo resto da vida), ser atendido é uma forma primitiva de ser amado, trabalhar para cuidar-se e abastecer-se evoca uma forma de solidão. (CORSO, 2006, p. 49)

Pesquisando para esta resenha, me parece cada vez mais importante o trabalho conjunto para a obtenção de resultados promissores no tratamento de crianças e adolescentes, não apenas nas questões alimentares. Vemos nos jovens a dificuldade em tolerar o Outro, seja na forma dos semelhantes, seja em situações de espera, frustração e decepção. A mídia e as redes sociais, com o constante estímulo ao consumo e à competitividade, provocam um abalo significativo nas possibilidades de confiança e estabelecimento de vínculos através das relações interpessoais. Na atualidade, com o incentivo ao individualismo, o trabalho em grupo estimula um retorno ao pertencimento, e com isso, ter com quem dividir os processos e jornadas pelas quais passamos.

[1]. O Psicossoma é o corpo dos sentimentos e emoções, o veículo com o qual nos manifestamos na dimensão extrafísica. O conjunto de componentes físicos e psíquicos, ou a união do corpo e da alma; unidade psicofísica do ser humano.

[2]. A palavra alienação aqui tem o sentido de alheamento, uma espécie de afastamento da consciência de si. É importante frisar isso, pois esse termo é um conceito importantíssimo para a psicanálise, especialmente no caso da constituição do sujeito, que acontece na fase de vida em que essas crianças observadas estão passando. 

[3]. João e Maria, originalmente Hansel e Gretel, é um conto de tradição oral, recuperado pelos irmãos Grimm.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BETTELHEIM, B. “João e Maria”, in: A psicanálise dos contos de fada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

CORSO, D.L. Expulsos do Paraíso, in: Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006.

CUNHA, C.C. da. ‘A gente não quer só comida’: integralidade na atuação interprofissional no cuidado da obesidade infantil. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v.46, nº especial 5, 284-296, dez. 2022. Disponível em http://doi.org/10.1590/0103-11042022E523  acessado em 13 de jul. 2024.


sexta-feira, 23 de agosto de 2024

NOVOS SINTOMAS: É ISSO MESMO?

“Que antes renuncie a isso, portanto, quem não conseguir alcançar 

em seu horizonte a subjetividade de sua época.” [1]

Jacques Lacan

Os sintomas que aparecem na clínica psicanalítica na atualidade parecem não se conformar exatamente com os modelos que a teoria apresenta. Somos surpreendidos com aparentes novidades, tanto na expressão do fenômeno sintomático, que não se enquadra bem com a definição nos termos de Freud- Lacan para sintoma [2] , quanto na resposta terapêutica que o paciente pode aceder. Mas será que as mudanças sociais e culturais produziram algo tão distinto do que já haviam observado os psicanalistas desde o final do século XIX?

A partir dessa questão, pretendo apresentar dois artigos que refletem sobre o termo ‘novos sintomas contemporâneos’, que tem sido recorrentemente utilizado para falar das patologias atuais, tais como anorexia, bulimia, toxicomania, hiperatividade, depressão adicções, pânico, e por aí vai. Optei por usar dois textos nesta resenha, porque eles se complementam naquilo que trazem sobre o assunto e podem servir para o melhor entendimento da questão.

Os textos Novos Sintomas: O que há de Contemporâneo no Mal-estar?, de Vanessa Serpa Leite e Rogério de Andrade Barros, de 2019, e Novos Sintomas e Declínio da Função Paterna: Um Exame Crítico da Questão, dos pesquisadores Rosane Zétola Lustoza, Maurício José d’Escragnolle Cardoso e Roberto Calazans, de 2014, me dão possibilidades de aprofundar o conteúdo apresentado pela professora Júlia Reis, na disciplina Clínica na Atualidade: Transtornos Alimentares e Sintomas Contemporâneos.

Serpa Leite e de Andrade Barros (2019) retornam ao conceito de sintoma em Freud e avançam até o termo ‘novos sintomas’, proposto pelos autores do Campo freudiano. Utilizam as referências freudianas de “neuroses atuais”, para estabelecer correlações com o estatuto dos novos sintomas, pouco permeáveis à palavra. Discutem dois casos clínicos como paradigma dos sintomas clássico e contemporâneo, apontando o avanço teórico e a incidência da cultura na prática da psicanálise.

Lustoza, Cardoso e Calazans (2014) examinam o caráter contraditório que existe entre o declínio da função paterna, ou da Lei social, e a inscrição do Nome-do-Pai. Afirmam que essa condição de falência da autoridade simbólica produz novas patologias, mas isso não seria assimilável com aquilo que chamamos de sintomas. Essas novas manifestações, para os autores, seriam respostas subjetivas à angústia. Através do quadro proposto por Lacan, em seu Seminário X - A Angústia - (1962/1963), apresentam os enquadres de acting-out, passagem ao ato e inibição, relacionados a fenômenos clínicos atuais. 

Já na introdução, Serpa Leite e de Andrade Barros (2019), apontam o neoliberalismo, e o discurso da ciência, relacionados com o mal-estar contemporâneo. Com isso, há a criação de novas subjetividades, em função da proliferação da tecnologia e produção de objetos de consumo imediatos. Como consequência, aparecem os sintomas padronizados, prontos para usar, na mesma lógica dos produtos expostos como mercadorias.

Continuam o texto recuperando a conceituação de sintoma feita por Freud, que foi muito atento com a variedade e a etiologia dos fenômenos histéricos, apontando a relação causal entre o elemento desencadeador e a formação do fenômeno patológico. Os autores fazem uma releitura de textos de Freud fundamentais para a teoria psicanalítica, tais como Os Estudos Sobre a Histeria (1893), Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905), O Mal-estar na Civilização (1930), entre outros, todos sob o viés das questões do sintoma e das intercorrências da cultura sobre eles. No entanto, eles se detêm em duas conferências em especial, de 1917, O Sentido do Sintoma e O Caminho do Sintoma, nas quais Freud destrincha a estrutura sob a qual um sintoma se forma e se manifesta. Além disso, Freud expõe tanto o modelo sintomático, através do qual o conteúdo recalcado retorna à realidade presente, mas também o que ele nomeia de ‘neurose atual’ [3] , que escaparia a essa lógica.

A estranheza da satisfação que o sintoma provoca é o que, segundo Freud (1917), vai produzir o sofrimento do qual o paciente se queixa. O sintoma é a solução de um conflito psíquico realizado em uma satisfação pulsional que aparece como incompreensível ao sujeito neurótico. (Serpa Leite e de Barros Andrade, 2019, p.112)

Sob a rubrica de ‘apresentação do problema’, Lustoza, Cardoso e Calazans (2019) se detêm na época contemporânea e a decadência dos grandes referenciais sociais. Indicam que se antes os sujeitos se norteavam por sólidos códigos que os auxiliavam a interpretar o mundo, através da tradição, religião e autoridade, colocada em algumas figuras que poderiam encarnar o grande Outro, hoje as balizas desmoronaram e não há mais uma coesão social. Há um rechaço generalizado a qualquer um que queira encampar algum lugar de exceção. Tudo é lido como artifícios de uma ficção cultural, um mero semblante. 

O foco principal de apresentação é apontar o declínio das insígnias sociais de referência e, com isso, as expressões livres de gozo com as quais os sujeitos têm que se confrontar. Os autores colocam atenção especial quanto a uma certa confusão que se faz no meio psicanalítico quando se fala de declínio da metáfora paterna e Nome-do-Pai, pois não é porque os referenciais que sustentavam o social decaíram que o significante estruturante também não está aí. Nas palavras deles, “muitos acabam assimilando de modo equívoco a decadência da lei simbólica a um apagamento do Nome-do-Pai.” (Lustoza, Cardoso, Calazans, 2014, p. 202)

Como o ponto principal do artigo de Serpa Leite e de Andrade Barros é a questão do sintoma, eles nos apresentam também outros autores, tais como Lacan, Racalcati, Tendlars, Laurent, Maleval, etc. Mas é com Jacques Alain-Miller, que aproximou a questão da toxicomania ao autoerotismo de Freud, que eles desenvolvem a lógica sob a qual é possível distinguir algo novo na manifestação sintomática atual, indicando que o mal-estar que se apresenta no setting analítico hoje está cada vez mais afastado da lógica do sentido. A antiga premissa de Freud, “onde estava o isso, deve advir o eu”, da Conferência XXXI, de 1933, - que pode ser interpretada como: tornar inteligível o que está inconsciente, encontrando o sentido por trás do sintoma, parece não dar mais conta das afetações que aparecem na clínica. Com uma pesquisa bastante robusta, eles destacam como tais autores apresentam a distinção entre a clínica clássica, com o mal-estar que cabia naquela época, e a clínica atual, com foco em gozos e demandas, diante de um Outro que não existe, ou melhor, com a operação do simbólico não conseguindo dar os limites ao real e ao imaginário, nem dar conta das demandas e imperativos de gozo que acometem os sujeitos, especialmente diante do coletivo globalizado, e ao mesmo tempo sem pertencimento.

Lustoza, Cardoso e Calazans (2014), focados nas implicações do declínio da função paterna, também apresentam uma pesquisa bastante robusta, conversando com outros autores além de Lacan, tais como Lipovetsky, Zizek, Miller, Recalcati, descrevendo consequências dessa destituição paterna, seja no campo sintomático, seja nas questões sócio-culturais. Utilizam como exemplo o filme Entre os Muros da Escola, de Larent Cantet (2008), ilustrando o que Bauman (2001) chamou de tempos líquidos. Também trabalham com a autora Alena Zupancic (2007), que faz considerações sobre a questão do vazio, que fica no lugar antes ocupado pelo grande Outro, na cultura. Questionam se realmente conseguimos lidar bem com esse lugar vazio, do pai ausente, como parecemos. Há uma ânsia por colocar alguém nesse lugar já antes ocupado. 

Por fim, Serpa Leite e de Andrade Barros apresentam o caso Elisabeth, de Freud (1893), com a questão da conversão na histeria e o sentido que tinha esse sintoma, como uma satisfação libidinal. Diante da interpretação, o sintoma pode ceder. É interessante perceber o quão complexas são as associações simbólicas para que esse sintoma possa se construir. Porém, ele pode ser desfeito. Em contraponto, apresentam um caso de Nieves Soria Dafunchio (2010), em que o sintoma que emerge é a angústia e não a conversão. É preciso primeiro construir um sintoma analítico para depois poder trabalhar com a paciente, que apresenta medo e dúvida como principais queixas. Como nos lembram os autores, a angústia já era para Freud uma das expressões das chamadas neuroses atuais.

Lustoza, Cardoso e Calazans, dizem que os chamados novos sintomas, não são exatamente sintomas, pelo menos no que pode ser considerado um sintoma no sentido de Freud e Lacan –aquilo que se articula com o campo simbólico -, porém, eles são respostas subjetivas diante do discurso atual, que incita o gozo. Os autores classificam esses novos sintomas mais próximos do acting-out, passagem ao ato e inibição. Descrevem e exemplificam como cada um desses modos subjetivos de lidar com a angústia se apresenta, delineando bem como se enquadram nas respostas atuais.

O acting out seria um ato impulsivo em que o sujeito visa sair de um impasse simbólico de forma desesperada, mostrando algo ao Outro. Tal ato pressupõe uma demanda-demanda que não é posta em palavras, mas que antes mostra alguma coisa ao Outro. (...)A passagem ao ato envolve justamente a saída do sujeito da cena. Não havendo mais lugar para si numa configuração simbólica determinada, o sujeito então se evade da cena. A passagem ao ato é o oposto do acting out: enquanto no acting o sujeito se esforça por restituir um lugar na cena do Outro, na passagem ao ato o sujeito, sem lugar na cena, se abandona à posição de resto. Por isso o sujeito na passagem ao ato não demanda mais nada ao Outro; ele não se endereça mais a ele, apenas se identifica ao resto que caiu da cena (...) A inibição não envolve a execução de um ato, mas sua ausência. Ela é a restrição de uma função do Eu, tendo como finalidade evitar um conflito. Tal conflito surgiria caso fosse realizada certa atividade, ligada àquela função. (Lustoza, Cardoso, Calazans, 2014, p.207, 208 209)

Como consideração final, Serpa Leite e de Andrade Barros insistem na importância da psicanálise no século XXI, especialmente pelo destaque que a angústia apresenta na contemporaneidade. As formas rápidas com as quais os sujeitos tentam encobrir a angústia não funcionam, e é pelo analista sustentar a falta-a-ser; poder manejar, e não suturar, as demandas dos pacientes; permitir que o falasser construa um saber sobre si; possibilitar uma amarração entre real, simbólico e imaginário, que a psicanálise é uma saída para a condição de sofrimento do sujeito contemporâneo.

Lustoza, Cardoso e Calazans (2014) fazem uma conclusão bastante longa e interessante, defendendo que as categorias psicanalíticas ainda estão vivas para dar conta dos sintomas atuais. Eles apresentam mais elementos, dando mais corpo ao texto, fazendo uma boa amarração com todos os pontos levantados. Mas também validam os estudos sobre novos sintomas, especialmente porque o que se apresenta na clínica desafia a questão diagnóstica tradicional, focada nas três estruturas: neurose, psicose e perversão, o que justifica ainda mais a função das entrevistas preliminares.

Enquanto Serpa Leite e de Andrade Barros (2019) recuperam Freud, Lacan e novos autores, para dar conta da estrutura do sintoma e colocar foco no princípio do trabalho clínico, Lustoza, Cardoso e Calazans (2014) partem dos conceitos lacanianos, e seus comentadores, tendo como atenção principal os aspectos fenomênicos dos sintomas, e por qual razão eles têm aparecido assim. Por entender essa complementaridade que os textos possibilitam sobre a questão, é que me pareceu pertinente aproximá-los aqui. Mais ainda, os textos nos despertam a vontade de voltar aos textos clássicos para rever pontos fundamentais, que nos auxiliam na clínica psicanalítica hoje, e continuar pesquisando com os autores atuais.

NOTAS

[1] Frase extraída do texto Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise, de 1953, de Jacques Lacan, no qual ele faz uma advertência à prática da psicanálise.

[2] Sintoma, no sentido psicanalítico, é uma formação do inconsciente que tem estrutura de linguagem. Apesar de interpretável, sua função está relacionada com uma satisfação libidinal, nos termos de Freud, ou um gozo, nos termos de Lacan. O sintoma supõe um conflito já instalado.

[3] Penso que esse termo, neurose atual, é uma escolha bastante inteligente de Freud, por ter um significado duplo, que indica tanto a expressão de uma condição neurótica não articulada com o um trauma do passado, recalcado, quanto uma atribuição aos sintomas que se apresentam na realidade contemporânea na qual um sujeito está vivendo. É algo que se altera com as mudanças em uma nova cultura. Ou seja, atual para o sujeito, atual para o social. E isso ainda pode ser pensado com o referencial de tempo, mudanças culturais entre o século XIX e o século XXI, por exemplo, mas também em relação ao espaço, em que um sujeito, quando muda de país, vivencia situações próprias do desconhecimento de uma nova sociedade e suas regras.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LUSTOZA, R.Z.; CARDOSO, M.J.d’E.; CALAZANS, R. “Novos sintomas” e declínio da função paterna: um exame crítico da questão. Ágora, Rio de Janeiro, vol. 17, nº 2, 201-213, jul.-dez. 2014. Disponível em https://doi.org/10.1590/S1516-14982014000200003 acessado em 26 de mai. 2024.

SERPA LEITE, V; de ANDRADE BARROS, R. Novos sintomas: o que há de contemporâneo no mal-estar? Revista aSEPHallus de Orientação Lacaniana, Rio de Janeiro, vol. 14, nº 27 , 110-124, nov.2018-abr. 2019. Disponível em http://www.isepol.com/asephallus/numero_27/pdf/8%20%20VANESSA%20E%20ROGERIO.pdf  acessado em 26 de mai.2024.


quarta-feira, 10 de julho de 2024

Carta de Lygia Clark para seu filho

Quais as palavras que marcam o sujeito na sua constituição? Que podem os pais transmitir da vida e da existência? 


Meu filho,

Você é um ser.

Existe na medida do mundo.

É pouco.

O mundo é a constatação da realidade exterior que te cerca.

É a tua medida inicial.

É o teu começo mas não o teu fim.

É o chão da tua expressividade pois você é um ser vertical.

Para cima do chão há o “invisível”.

Você pode olhar os seus pés mas não a sua própria imagem.

Esta você a percebe.

Na verticalidade está a medida da sua procura.

Quando você aceitar a simples constatação da vida, aí sim, será o seu começo.

O primeiro sentimento será de perda pois tudo que cai na constatação é vivido como ganho.

Tudo adquirido como perda até a integração absoluta do “o percebido” no seu interior.

É a própria dinâmica da vida: perde-ganha.

Quando você se sentir no mais absoluto desespero você está sendo salvo.

Solte e aceite a tua intuição que te levará a uma aparente solução – solução esta sempre provisória.

Aceite o provisório pois jamais o processo pode parar.

A vida pode vir a ser uma realidade extraordinária desde que você esteja voltado para sua procura interior.

Não há realidade independente do “interior de si”.

Desconfie das coisas claras, a pureza é descoberta dentro da maior conturbação de uma crise. É o ponto luminoso dentro da maior escuridão.

O teu corpo meu filho, é o veículo da tua vivência.

Não o impeça de florir por nada. Cuide dele como você cuida do teu carro.

Toda a tua riqueza interior vai suá-lo, sujá-lo, e até sangrá-lo.

Quando ele estiver gasto externamente você mesmo estará mais inteiriço e completo interiormente.

Você o despirá um dia como a crisálida deixa o casulo.

Ai de você se neste momento você é ainda o início não elaborado pois aí você vai saber que esteve permanentemente morto em vida.


de Lygia Clark, 1970.

Imagem: Helio Oiticica.



quarta-feira, 8 de maio de 2024

O Mal-estar na cultura revisitado

 


Fiquei muito contente com o convite de Lúcia Santaella para fazer parte do grupo de autores que compõem esse livro e estão pesquisando sobre a cultura na atualidade.
Com o texto, Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come! Algumas reflexões sobre a sedução e a angústia a partir do filme O homem Ideal, produzido para a conclusão da pesquisa sobre Angústia e Sedução, realizada no Instituto Vox, entre 2021 e 2023, faço minha participação nessa coletânea.

Num breve resumo, esse trabalho que realizei pretende apresentar a relação do sujeito no espaço erótico-relacional em tempos de relacionamentos atravessados pela tecnologia e pela robótica.
O campo da sedução, fundamental para o despertar do desejo e da vivência de fantasias eróticas, modulado pela angústia, ainda funcionaria na relação com as máquinas?
O filme 'Ich bin dein meinsch', (Eu sou seu humano / eu sou sua pessoa), traduzido por I am your man, e no Brasil, O homem ideal, da diretora Maria Schrader, me serve para algumas reflexões acerca desse tema.

Venham ao lançamento, comprem o livro, leiam o texto.





POR QUE LOUCURA?

 "Sanidade é uma mentira aconchegante."[1]

Susan Sontag

Nesta resenha pretendo apresentar o capítulo 7, do livro “O que é loucura?”, de Darian Leader (2013). Nessa obra, Leader parte da premissa de que nem toda psicose é ruidosa como a cultura nos faz acreditar, através de filmes, livros e séries. A escolha do capítulo 7, intitulado “O desencadeamento do surto”, foi feita em ressonância com as aulas da professora Cláudia Henschel de Lima. Tal como Henschel, Leader (2013) traz elementos do famoso caso Schreber, analisado por Freud, a partir do seu livro autobiográfico. Além disso, trabalha com outros inúmeros autores, psiquiatras e psicanalistas, nos mostrando como a psicose vem sendo tratada, e retratada, no campo da saúde mental.

Leader (2013) inicia o capítulo 7, Desencadeamento do Surto, com um fragmento de caso clínico, que aponta o momento da ruptura do elo que mantém um rapaz de 23 anos estabilizado. O toque dos pés no chão, após o salto de paraquedas, detona a sua psicose. A frase “Eu sou Deus” anuncia o estado delirante.

Abrir o capítulo dessa forma, foi o recurso usado, como meio de conduzir o texto, indicando que após tal acontecimento, geralmente o processo de acolhimento e trabalho com o psicótico nos afasta de uma atenção mais precisa quanto às etapas envolvidas nesse processo. A observação atenta do curso do desencadeamento é fundamental para podermos evitar precipitações desse tipo, ou mesmo trabalharmos de forma adequada, quando a situação já se deflagrou. Há uma sequência bem definida e é importante que possamos especificar essas etapas. Apesar disso, Leader (2013), afirma que a maioria das pessoas psicóticas não experimenta um surto na vida.

A primeira etapa consiste em ter a impressão de que as coisas mudaram. Há uma vaga ideia de que tudo está errado ou diferente. É uma mudança na significação do mundo ao seu redor. O processo desencadeado vai seguindo uma sequência, como uma espécie de efeito dominó[2].

Já nesta primeira etapa, é possível que exista um retraimento nas relações sociais. E, por isso, nesse momento, a pessoa pode evitar atividades que antes faziam parte da rua rotina. A preocupação com o que está acontecendo tira seu interesse das atividades habituais, podendo inclusive atrapalhar sono e apetite. Isso pode acontecer de forma sutil ou muito direta, mas está relacionado a essa sensação de que o mundo mudou. É interessante perceber que o que muda é fora. Isso é um traço da psicose, algo fora do sujeito que mudou e agora é preciso encontrar o sentido pra isso.

Na segunda etapa, as novas significações que foram intuídas anteriormente, começam a se dirigir à pessoa. Passam a ser significações pessoais. As mudanças do mundo concernem ao sujeito. Porém, a significação real não é clara, o que aquilo quer dizer não é evidente para a pessoa. É nessa hora que o mundo começa a falar. Tudo começa a falar com o sujeito. É comum isso ser sentido como diretamente persecutório. Por outro lado, é possível o sujeito entender que o mundo acabou, que a realidade é vazia e monótona.

O mal-estar hipocondríaco também começa nesse ponto, mesmo que seja difícil de descrever. Nessa fase, as mudanças no corpo ainda aparecem como uma estranheza. O sujeito pode ir atrás de explicações, através de consultas médicas, informações em livros, ou internet, tentando entender o que se passa nele. Essa situação tende a ficar mais aguda posteriormente, quando uma ideia é fixada num ponto específico do corpo. Segundo Leader (2013), “Enquanto no sujeito paranoico é comum haver a impressão de que a mudança está ocorrendo no mundo a seu redor, no esquizofrênico é possível que o corpo seja o primeiro a registrar a ideia de que está havendo uma mudança” (p.115).

Numa fase posterior, a terceira, essas significações passam a ser interpretadas. Tudo assume um significado particular. É importante explorar essas ideias do psicótico porque se tratam das operações básicas de criação de significado, descobertas para dar novos sentidos ao mundo que mudou, buscando formas de manter alguma coesão, ou entender o que se passa. Há uma mobilização de significados para dar conta da experiência enigmática. Segundo Leader (2013), Lacan nomeia isso de “momentos fecundos”, que permitem a construção do delírio. Essa fase pode ser longa, mas também pode nunca acontecer, deixando o sujeito psicótico à mercê dessa constante tentativa de dar sentidos, achar uma posição ou lugar. Ao invés de criar um delírio, também é possível que a pessoa atue, através da automutilação, ou alguma forma de introduzir uma negatividade, uma distância das forças invasivas. O indivíduo precisa subtrair algo do seu corpo, ou do seu meio.

Como assinalou Colette Soler, depois da fase inicial do processo de surto, os esforços dos sujeitos psicóticos deslocam-se nessas duas direções: acrescentar algo ao mundo, por meio do delírio ou da criação, ou retirar algo do mundo, por meio da automutilação ou da mudança. Ambos constituem tentativas de curar a si mesmo. (LEADER, 2013, p. 116)[3]

Após apresentar as etapas do processo de desencadeamento do surto psicótico, Leader (2013), levanta a questão sobre o que causaria o disparo dessa sequência. Dá uma primeira resposta, através da indicação de Lacan, de que o indivíduo teria passado por uma mudança em sua ‘situação vital’. Isso pode significar perda de posição social, aposentadoria, casamento, divórcio, perda dos pais, etc. Esses são momentos conhecidos como desencadeadores potenciais. E podem se manifestar com a irrupção de alucinações ou uma instauração mais silenciosa.

Porém, o que teria de comum nessas situações que apresentam o rompimento da cadeia significante, que sustenta o sujeito enquadrado na sua vida? Todos esses momentos levariam a uma mudança na situação simbólica do sujeito, exigindo que ele assuma um novo lugar. Uma espécie de rito de passagem. É necessária uma estrutura simbólica bem definida para processar e passar por essas situações complexas.

Se a ordem simbólica não estivesse internalizada, não estaria disponível para fornecer uma rede de significações para processar os momentos de mudança. Em vez do sentido, haveria a experiência aguda de um buraco. Para Lacan, era esse o buraco que se abria no desencadear do surto psicótico. Visto que o simbólico se compunha de significantes que eram todos interligados, quando vinha a sensação de que faltava um termo privilegiado, seus efeitos se espalhavam pela rede inteira (LEADER, 2013, p.117)  

Leader (2013), segue avaliando o que seria então isso que falta. Mais uma vez inicia com a conceitualização feita por Lacan. O que faltaria na rede simbólica seria o que estaria no lugar do pai simbólico, a internalização da lei. Porém, avançando mais na questão, fundamentalmente, não era apenas a ausência desse significante que produziria o desencadeamento, mas a convocação desse significante num ponto em que a pessoa estava inserida numa relação dual imaginária com Outro. Essa fratura se dava diante de uma situação em que algo, ou alguém, se intrometia nessa dualidade, exigindo que o sujeito tivesse algum recurso para se reequilibrar diante do aparecimento de um terceiro.

Mesmo em situações aparentemente felizes, esse encontro com o elemento desencadeador pode ocorrer. Não se trata de um estado emocional de júbilo, ou frustração, que dispararia o processo. É o encontro com uma idéia, que não tem um lugar simbólico no mundo da pessoa psicótica, que promove essa ruptura. Um elemento que nunca foi simbolizado pode se impor de fora pra dentro, como formulou Lacan, “o que foi forcluído no simbólico, retorna no real.” (apud LEADER, 2013, p. 119)

Leader (2013) aponta a importância de se ter atenção para o terceiro termo simbólico, tanto quando se trata do desencadeamento do surto, quanto para a segurança do paciente. Ele se detém num caso clínico em que, por questões de técnica e posicionamento da terapeuta, esta optou por ser excessivamente neutra em relação às questões em que o paciente pedia algum tipo de tomada de posição dela, deixou escapar que algo pior poderia acontecer. E, realmente ele se suicidou. Evidentemente isso poderia ter acontecido, mesmo com outra conduta da analista. Porém, ele apresenta esse caso para introduzir o problema da posição do terapeuta diante do psicótico durante o trabalho clínico. No entanto, o tema da direção do tratamento será desenvolvido em outro capítulo do livro.

Os momentos de surto, como vimos, apontam um apelo ao significante, que deveria estruturar o nível simbólico, mas não está lá. Porém, também envolve a falta, o buraco na significação, no significado diante de alguma situação. Isso indica que nem sempre o desencadeamento acontece somente diante do terceiro. O problema com a significação, em algumas situações específicas, pode também ser um fator desencadeante. Isso aparece frequentemente no campo do amor, ou do sexo. No encontro com o desejo do Outro, o sujeito psicótico pode se ver a mercê de forças desconhecidas. Sem o respaldo de significação, nem significante que sustente algum sentido, não há bussola diante do desejo enigmático do Outro.

Os estados de excitação geralmente são fonte de ansiedade. Porém, a puberdade e a adolescência, são momentos particularmente muito complexos, que colocam à prova a estrutura do sujeito. Nessa fase, se junta o apelo social às práticas sexuais, com as demandas à tomada de uma nova posição no coletivo, E, se uma significação não foi transmitida, e recebida de forma apropriada, esses estados tendem a ser problemáticos. Por isso é comum a psicose irromper na puberdade, ou adolescência, especialmente a esquizofrenia, cujo traço principal é dar sentido ao corpo. Há uma demanda de sentido que escancara o buraco do significante forcluído.

Leader (2013), no intuito de trazer as ideias, que recorrentemente aparecem nos delírios psicóticos, nessa situação descrita acima, apresenta casos em que, diante do surto, frente ao apelo sexual, pode aparecer a questão da imortalidade. E não só isso. O sujeito ainda se vê como um ser especial, único e último no planeta, responsável pela raça humana. Essas ideias vão se formando como delírios para dar conta de algum tipo de identidade para o sujeito. Segundo ele, “A ausência da função simbólica da paternidade é a razão porque os delírios de renascimento, criação e filiação são tão comuns na psicose” (p. 125), e ainda, “como tantas vezes constatamos na psicose, a ideia não integrada de uma origem é reconstruída e reelaborada no delírio“.(LEADER, 2013, p. 125)

E assim como os inícios são complicados, os fins também. No lugar em que a mortalidade não pode ser simbolizada, aparece o delírio. A morte faz parte dos temas universais humanos, que são simbolizados e transmitidos coletivamente. Temos mitos e lendas que os retratam. Religiões que estabelecem enquadres possíveis diante desse fenômeno tão tocante como a morte. E como na psicose, a estrutura simbólica que daria conta disso, não está presente, uma coisa entra no lugar, o delírio.

Seguindo para o final do capítulo, Leader (2013) apresenta uma série de casos que exemplificam formas de desencadeamento do surto, que não se enquadram no encontro com a figura de autoridade simbólica, ou o terceiro, mas com uma situação em que a solução criada para manter a vida no lugar, esbarra num obstáculo, tal qual a confusão da significação. Os mecanismos de estabilização e compensação, que foram utilizados por anos, décadas, são subitamente questionados. Em muitos casos, como parte da construção delirante, é necessário seguir pela via da diminuição da libido em si mesmo, ou no Outro, justamente porque o simbólico não fez essa função de subtração de libido. A ideia, no psicótico, é de que a retirada de algo aplaca a perseguição. Porém, o que poderia ser colocado num plano metafórico, vai para o plano literal.

A teoria que resumimos presume que habitamos um mundo de significação e que os acontecimentos e as mudanças de nossa vida são mediados por processos simbólicos. Devemos estar aptos a simbolizar as coisas que nos acontecem, os novos papéis que nos descobrimos ocupando, as novas posições que podemos ser chamados a assumir e a proximidade do Outro que às vezes a vida envolve. Quando o apelo à estrutura simbólica fracassa – pelas razões que estivemos examinando –, pode haver o desencadeamento de um surto psicótico. Abre-se um buraco no nível do mundo imaginário do sujeito. Há um sentimento profundo de mudança. E em seguida, na maioria dos casos, há um esforço de encontrar algum tipo de solução, uma compensação, através da construção do delírio ou de qualquer atividade que prometa proporcionar uma base no ponto em que o simbólico falha. Isso pode envolver um projeto de pesquisa, uma nova profissão, uma atividade artística ou uma busca das origens, ou da verdade histórica. (LEADER, 2013, p. 129)

Uma pergunta que surge é em relação aos significantes que vão fazer a composição das ideias delirantes. Leader (2013), tanto nesse capítulo quanto nos anteriores, faz grande esforço de mostrar, através dos casos clínicos, que não são elementos aleatórios que compõem a tentativa de restauro da realidade e da vida do sujeito psicótico. Pelo contrário, são situações vividas, frases ditas e contraditas, relações distorcidas com figuras parentais, formas de abuso físico ou psicológico, que de alguma forma, criam o material de onde o sujeito psicótico vai tirar as ideias que farão parte do novo momento delirante. E, não podemos deixar de lado, o que Lacan chamou de ‘inconsciente a céu aberto’[4], em que o sujeito psicótico parece captar o que o outro pensa, o que está acontecendo no mundo externo, muitas vezes antecipando situações. Por isso, essa impressão de clarividência que acomete alguns sujeitos nesse momento de entrada no surto, e depois, é tão recorrente. Nem sempre o que pode ser considerado um delírio, não tem um significado verdadeiro, não apenas para o sujeito, mas também para o coletivo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LEADER, Darian. O que é loucura. Delírio e Sanidade na vida cotidiana. 1ª ed. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013.

[1] Essa frase de Susan Sontag levanta a mesma questão que Darian Leader propõe no livro de referência para esta resenha. Ela ainda é bastante interessante, se pensarmos que todas as nossas formas de significar a realidade, por mais que sejam compartilhadas, são produções de linguagem, algo da ordem de uma invenção para saber em que posição estamos. E ainda, se considerarmos os sintomas atuais, os limites entre sanidade e loucura estão borrados e se torna cada vez mais delicado estabelecer uma certeza sobre essas posições.

[2] Efeito dominó é uma expressão que geralmente é usada como metáfora para uma situação que se inicia, e não há meio de pará-la antes de chegar ao final.  As pedras do jogo de domino são paralelepípedos que, se apoiados em uma superfície, ficam estáveis. Porém, se algo encosta nelas, tendem a cair, empurrando as demais, caso estejam uma ao lado da outra. Inevitavelmente, uma derruba a outra até que todas estejam caídas, no mesmo lugar em que antes se apoiavam. Há artistas que fazem desenhos com os paralelepípedos enfileirados, revelando uma nova imagem no final da sequência da queda das peças. Temos algo semelhante na psicose: na sequência do surto, os elementos que sustentavam uma estabilização vão caindo, e empurrando os outros, até chegar ao final do  surto. Nisso, uma nova imagem se formará. 

[3] A versão do livro utilizada nesta resenha é eletrônica, podendo variar a numeração das páginas.

[4] O aforismo ‘inconsciente a céu aberto’, de Lacan, pode ser encontrado entre os anos de 1955 e 1966. Surge na aula do dia 14 de dezembro de 1955 do Seminário 3 ([1955-1956] 2002, pp. 73-85), até a aula de 20 de abril de 1966 em seu Seminário 13 ([1965-1966] n.d., pp. 233-247), passando por outros seminários neste intervalo, além de dois textos dos Escritos.