quarta-feira, 10 de julho de 2024

Carta de Lygia Clark para seu filho

Quais as palavras que marcam o sujeito na sua constituição? Que podem os pais transmitir da vida e da existência? 


Meu filho,

Você é um ser.

Existe na medida do mundo.

É pouco.

O mundo é a constatação da realidade exterior que te cerca.

É a tua medida inicial.

É o teu começo mas não o teu fim.

É o chão da tua expressividade pois você é um ser vertical.

Para cima do chão há o “invisível”.

Você pode olhar os seus pés mas não a sua própria imagem.

Esta você a percebe.

Na verticalidade está a medida da sua procura.

Quando você aceitar a simples constatação da vida, aí sim, será o seu começo.

O primeiro sentimento será de perda pois tudo que cai na constatação é vivido como ganho.

Tudo adquirido como perda até a integração absoluta do “o percebido” no seu interior.

É a própria dinâmica da vida: perde-ganha.

Quando você se sentir no mais absoluto desespero você está sendo salvo.

Solte e aceite a tua intuição que te levará a uma aparente solução – solução esta sempre provisória.

Aceite o provisório pois jamais o processo pode parar.

A vida pode vir a ser uma realidade extraordinária desde que você esteja voltado para sua procura interior.

Não há realidade independente do “interior de si”.

Desconfie das coisas claras, a pureza é descoberta dentro da maior conturbação de uma crise. É o ponto luminoso dentro da maior escuridão.

O teu corpo meu filho, é o veículo da tua vivência.

Não o impeça de florir por nada. Cuide dele como você cuida do teu carro.

Toda a tua riqueza interior vai suá-lo, sujá-lo, e até sangrá-lo.

Quando ele estiver gasto externamente você mesmo estará mais inteiriço e completo interiormente.

Você o despirá um dia como a crisálida deixa o casulo.

Ai de você se neste momento você é ainda o início não elaborado pois aí você vai saber que esteve permanentemente morto em vida.


de Lygia Clark, 1970.

Imagem: Helio Oiticica.



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